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ANOS 70: COMEÇO DO FIM OU FIM DO COMEÇO?

 
  Por FERNANDA MAYER
especial para o site Moda Almanaque
 


Reprodução
Cartaz do festival Woodstock, realizado na cidade de Bethel (EUA), em 1969

A história não costuma se restringir a limites de tempo/espaço muito rígidos. Assim, é difícil dizermos exatamente quando e onde começaram os ditos anos 70. Talvez em 68, 69, 70 ou até mesmo em 71.
Os anos 70 começam quando terminam os anos 60. E isto pode ter sido em maio de 68, em Paris, durante a primavera de Praga, ou quem sabe, em agosto de 69, em Woodstock, quando Jimmy Hendrix mesclou o hino dos EUA com o som das bombas que explodiam no Vietnã.
Mas podemos afirmar com certeza que quando Lennon disse "O Sonho Acabou" [em 1970, com a dissolução dos Beatles], já estávamos nos anos 70. Assim, podemos combinar, cá entre nós, que a década começou no momento em que perdeu-se a inocência e a crença nos ícones e bandeiras dos 60.

Este foi um processo lento. Colaboraram para ele o assassinato da atriz Sharon Tate por um grupo de fanáticos liderado por Charles Manson em 1969, as mortes de Jimmy Hendrix e Janis Joplin em 1970, de Jim Morrison em 1971 e até a chegada solitária do homem à Lua em 1969, imagem célebre que coroou não só o fim de uma década mas, principalmente, o início de outra.

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Os Novos Baianos compunham, tocavam e conviviam no mais completo espírito "paz e amor" dos 70

Não podemos afirmar que o início dos anos 70 tenha sido o fim da revolução lançada pelas enormes conquistas dos anos 50 e 60. Ao contrário, assistimos muitas vezes ao aprofundamento desses avanços. No Brasil, por exemplo, muitos jovens idealistas radicalizaram a sua luta política ingressando na clandestinidade para combater o regime militar. O feminismo conseguiu grandes avanços diminuindo a desigualdade entre homens e mulheres. Também ganharam força a defesa dos direitos das minorias, a luta contra o racismo, o combate à censura etc.

O que mudou, afinal, foram as formas de manifestação e expressão que acabaram se tornando mais sutis, menos ingênuas, e até mais debochadas. Fomos nos tornando mais cínicos à medida que as autoridades se tornaram mais repressoras. Aprendemos assim a escrever nas entrelinhas, a deixar o dito pelo não-dito, ou, nas palavras do poeta e compositor tropicalista, morto em 1972, Torquato Neto, começamos a "ocupar espaço, amigo, eu digo: brechas (...) Eu acredito firme que sem malandragem não há salvação".

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David Bowie na capa do disco "Aladdin Sane", de 1973, que, junto com "Ziggy Stardust" (1972), fez o ápice de sua fase glitter

A moda, por sua vez, continuou revolucionária com muita experimentação de materiais, cores, formas e texturas. A estética hippie ganhou espaço com a psicodelia e atingiu o mainstream. Era a vez do o hippie-chic com as estampas multicoloridas de Pucci e os tecidos de estilo cashmere das roupas indianas. As indefectíveis calças boca-de-sino com sapatos plataforma instituíram o unissex na moda e a minissaia [lançada nos anos 60] ainda marcou presença no início dos 70, desaparecendo inexplicavelmente até o começo da década seguinte, quando voltou para ficar.


No início dos anos 70, surgiu a onda glitter: a nova moda futurista, andrógina, metálica e espacial sintetizada na figura camaleônica do roqueiro David Bowie.

O hedonismo dos festivais de rock ao ar livre, a celebração da vida alternativa, do amor livre, das drogas, do "flower power", foi cedendo espaço para a individualização, para o culto ao prazer e para o sexo casual em espaços fechados - as discotecas.

Neste momento, Andy Wahrol proclama: "no futuro todos serão famosos por 15 minutos". Assim, cada um de nós, simples mortais, começamos a correr atrás dos nossos 15 minutos, "travolteando" nos embalos de sábado à noite.

Divulgação
Cena clássica do filme "Embalos de Sábado à Noite" (1978), com John Travolta arrepiando nas pistas ao som dos Bee Gees

Por outro lado, o rock progressivo com influência da música erudita foi se afastando das raízes originais do estilo tornando-se cada vez mais elaborado.

Em meados da década, porém, a superficialidade disco e a afetação dos concertos orquestrais de rock começaram a incomodar os inconformistas de plantão. A reação a este estado de coisas não demorou. E veio com tudo: o movimento punk. Até hoje não se fez jus à verdadeira importância da revolução punk, e sua contribuição cultural ainda não foi devidamente considerada e reconhecida.

O punk foi simultaneamente a resposta à frivolidade disco, à ingenuidade hippie e ao rebuscamento do rock progressivo.

À dúvida dos anos 70, herdada dos 60, "ficar à margem do sistema ou integrar-se ao sistema", os punks responderam: nem uma coisa nem outra. A nova proposta era destruir o sistema, substituindo a velha ordem hipócrita, injusta e desigual por uma sociedade mais verdadeira e honesta.

Não é por acaso que o movimento eclodiu em bairros operários dos subúrbios da Inglaterra. Era lá que a crise econômica estava mais brava e era lá também que a mentalidade pequeno-burguesa era mais conservadora.

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A banda punk inglesa Sex Pistols em cena do documentário "O Lixo e a Fúria" (1999), de Julien Temple, testemunha ocular da história

Mas os punks defendiam também o direito à diversão, à liberdade, à alegria simples e genuína de uma música de três acordes falando da vida comum de pessoas comuns.

E assim, para concluir, qual foi afinal, o legado dos anos 70? Talvez seja luta pela liberdade de expressão em todas as suas dimensões. A luta pelo fim da censura, pela igualdade de condições e oportunidades para homens e mulheres, pela liberdade de opção sexual, liberdade para criar sua própria moda com o "faça você mesmo", liberdade para dançar como quiser - "dance bem, dance mal, dance sem parar"...

Até hoje, a década é uma referência para os criadores de moda, que se inspiram nas múltiplas tendências dos anos 70: hippie, glitter, disco, punk e até a moda engajada, que, ironicamente, chegou a adotar o estilo militar nas roupas.

Por isso, para o Brasil pelo menos, talvez os anos 70 não tenham terminado em 1979, mas um pouco depois, com a luta pela abertura política, com a luta pelas "Diretas Já" em 1984, com o amadurecimento de uma produção cultural de peso no cinema, na música, na televisão, ou até mesmo, em 1982, com a derrota da Seleção Brasileira na Copa, doze anos depois da conquista do tri.

E hoje, mais de trinta anos depois do "Concerto para Bangladesh" [primeiro show beneficente do rock feito em prol dos refugiados de Bangladesh e idealizado pelo ex-beatle George Harrison] assistimos a inúmeras iniciativas semelhantes, o amadurecimento das ONGs (Organizações Não Governamentais) e o surgimento de uma mentalidade mais solidária, provando que foi possível conservar o legado idealista da década de 60 através dos conturbados anos do fim do século 20 até estes não menos confusos primeiros dias do século 21.

Fernanda Mayer é historiadora e mestre pela Usp (Universidade de São Paulo). Atuou como professora de história e assistente de museologia no Museu Paulista. Possui textos publicados na Folha Ilustrada e Folha Online, além de colaborar com sites na Internet e com pesquisas para várias editoras.