ENGRAXATES DE SÃO PAULO

Publicado na Folha da Noite, domingo, 14 de abril de 1935.


RUBEM BRAGA

A São Paulo, Avenida São João. A vida em São Paulo está barata. Vemos ali sandwiches de queijo ou de presunto a duzentos réis. A avenida é larga, é bella, cheia de gente e de barulho. Desçamos no meio da turba. Na praça do Correio existe a estatua mais feia da America do Sul. É de Verdi. Amo este trecho entre a praça do Correio e o largo Paissandu. Vinde ver os engraxates. Aí, engraxates de São Paulo! Aí, sobretudo engraxates volantes de São Paulo! Engraxates civis, engraxates militares. Entremos nesta casa. Ao fundo, dez barbeiros. Barba, quinhentos réis. Mais para o fundo, duas manicuras. Unhas, dois mil réis. Ao lado o homem que rapidamente limpa, lava, renova, ó transeunte, vosso velho chapéo de lebre. E aqui, bem perto da rua, os engraxates. São quinze. Todos estão vestindo macacão azul. Nas costas o nome da casa apparece em vermelho. Elles estão em fila, recurvos, quinze engraxates recurvos, magros, sujos, trabalhando freneticamente. Um tostão. Pagando cem réis, transeunte, vossos sapatos brilharão. Eu sei, transeunte, que o vosso costume de casemira está poido atraz, que o paletó tem manchas que nenhum chinez destruirá, que a calça tem joelheiras pardas, que a vossa camisa está suja e remendada, que a vossa gravata já mudou de côr. Eu sei que vosso estomago está correndo para casa com fome, que elle já comeu pastel de carne, já bebeu uma "batida" rapida. Sei que vossos sapatos já estão arruinando as segundas meias solas, pois em São Paulo se anda muito e se anda depressa. Eu sei que vossos bronquios soffrem com a garôa poetica e assassina, grande provocadora de poeminhas e de pneumonias. Eu sei que a vossa vida está suja como vossa roupa, descolorida como vossa gravata, inquieta como vosso estomago, gasta como vossos sapatos. Entretanto é apenas cem réis, e vossos velhos sapatos brilharão sobre o asphalto infeliz. Bem creio que isso não melhorará vossa vida, nem modificará, transeunte, vossos tristes caminhos. Mas apesar de tudo os sapatos velhos brilharão de um brilho gasto, artificial, ralo, equivoco, mentiroso, precario, sublime.

Cem réis. Os engraxates estão marciaes, sujos, freneticos. Quando não há gorgeta elles nem siquer têm tempo de pronunciar o nome feio italiano que borbulha em seus corações A esta hora da tarde é preciso ser rapido, disputar os freguezes. O dono da casa escreveu: "Engraxate, cem réis". Baratissimo. Insufficientissimo. As gorgetas! Viva o regime da gorgeta! O engraxate é cincoenta por cento um trabalhador, cincoenta por cento um mendigo. Esses mendigos que não pedem esmola, mas grunhem quando não recebem. É humilhante. Humilhante? Quem foi que disse, poeta, que isso é humilhante? Humilhante é a vida. Será que não ha um meio de concertar a vida? Deve haver. Tenho meditado sobre esse assumpto. Nós faremos muitas coisas pouco recomendaveis e contra os sentimentos do povo brasileiro, que em sua enorme maioria é catholico, ordeiro e syphilitico. Com excepção dos tuberculosos e de outros. As balas das metralhadoras ferirão os caules das rosas suaves. Mas agora não. Agora o melhor é mandar engraxar os sapatos enquanto se medita.

Quem engraxa vossos sapatos é um velho napolitano de bigode, atarracado e sujo de graxa. Ao seu lado está um menino magrello de onze annos. Todos sentem uma dor nas costas, um cansaço nos musculos do braço. Todos são uma só machina azul funccionando sem cessar, precaria e heroica machina humana. Nenhum delles possue uma educação finissima. Assegura-se mesmo que elles não sabem distinguir a "Simphonia" em mi, de Holzbauer, de "L'Arlesienne", de Bizet. Isto não é crivel. O Conservatorio Dramatico e Musical é ali tão pertinho, na avenida mesmo!

Anda, velho italiano, engraxa depressa meus velhos sapatos. Eu tenho pressa, e tu acaso não a tens igualmente? Depressa, velho sordido, cumpre teu trabalho.

Eu sou um principe. Tenho um homem aos meus pés, recurvo, miseravel, adulador aos meus pés. Somos quinze principes installados em cadeiras de braços, fumando cigarros deante de quinze escravos. Examino os outros principes. Meu vizinho da direita é evidentemente um principe caixeiro. O da esquerda é um principe funccionario publico. Aquelle outro gordo é principe proprietario de um pequeno botequim. Somos quinze sujeitos. Somos quinze sujeitos importantes, realmente. Como estamos bem installados sobre esses párias de macacão azul! Os párias nos offerecem bilhetes de loteria. Em nossa frente, na parede, há um cartaz colorido de annuncio de loteria. Uma senhora despeja mil moedas de ouro de sua cornucopia. As moedas de ouro entretanto não caem no chão ladrilhado. Ficam no cartaz, na parede. No fundo não são moedas de ouro, são moedas de papel e tinta. Dá no mesmo, ellas existem, e nos seduzem. 500 contos de réis. 500 contos de réis... A loteria corre depois de amanhã. Quinhentos contos de réis. Nós, os principes, sonhamos vagamente, sem querer. Nós todos queremos ser verdadeiros principes, ou, no minimo, condes do Papa. Mas é evidente que nunca se ganha nada na loteria. É besteira comprar bilhetes de loteria. Nós sabemos perfeitamente disso.

Mas os parias offerecem. Quinhentos contos. Um vigesimo, vinte e cinco contos. Por tres mil réis é barato. Os parias nos vendem gasparinhos. E continuam trabalhando, freneticos, azues, sujos, de todas as idades, todos iguaes dentro dos macacões e da miseria.

Porém aqui fora, na calçada, a noite desce, faz frio, e neste bravo São Paulo estão os engraxates civis. Não têm uniformes. Não têm local de trabalho. Estão sempre esfarrapados. A gente fica em pé, e elles se agacham para engraxar. A policia os persegue. Hontem vi, eu vi com estes olhos que a terra há de apodrecer. Eram talvez oito. Estavam no canto do passeio borborinhante. Trabalhavam. Ali não se paga um tostão paga-se duzentos ou trezentos réis. Conforme a cara do freguez. Mas estavam demasiado proximos da casa do homem que é o patrão dos engraxates de macacão. O homem açula seus engraxates de uniforme contra os engraxates de farrapos. Mas estes estão na rua, e sabem a technica do combate de rua. Sabem jogar pedra, jogar xingamentos, provocar, fugir, voltar, vaiar, atormentar. O homem teme a concorrencia dos engraxates volantes. Além de tudo - affirma - elles não pagam licença. De modo que um commerciante honesto que paga a sua licença fica prejudicado por esses vagabundos. O homem se queixa. Os engraxates em farrapos batem nas pernas dos transeuntes, namoram seus sapatos sujos. Trabalham de cócoras. Mas os homens da policia receberam ordens. Pegam os engraxates, com excepção dos que fogem. Os engraxates berram, reagindo contra a prisão. Vão para o xadrez. Não veio tintureiro. Vão a pé, em bandos, vigiados, loucos para fugir. A prisão não adeanta coisa alguma, nem para elles, nem para a policia, nem para o homem que é o dono dos engraxates em macacão. Apenas verifico que os engraxates uniformizados acham graça, zombar dos prisioneiros com berros, enquanto trabalham.

Entretanto elles amanhã poderão ser despedidos e serão tambem, como já foram, engraxates em farrapos. Vivem tão miseravelmente como elles. Engraxates de todas as vestes, uni-vos.

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