Mario Vargas Llosa
Guimarães Rosa nasceu em 1908 em Minas Gerais. Após
fazer estudos de medicina, se instalou numa pequena cidade do sertão,
e se engajou como médico voluntário durante as guerras
civis que ensanguentaram o Brasil dos anos 30, depois abandonou
a medicina para abraçar a carreira diplomática. Foi
embaixador do Brasil na Alemanha, na França e na Colômbia,
antes de ser responsável pelo serviço de fronteiras
do Ministério do Exterior de seu país. Mas detrás
destes poucos e ternos dados biográficos, esconde-se uma
personalidade estranha, enigmática.
Sofrendo de uma alergia toda faulkneriana às entrevistas,
Guimarães Rosa tinha o hábito de escapar, não
sem várias palavras de amigável ironia, dos jornalistas
e dos curiosos. Eu o conheci brevemente em Nova York, em 1966, durante
uma reunião do Pen Club. De uma elegância um pouco
espalhafatosa (cada dia com gravatas-borboleta diferentes, sapatos
brilhantes como espelhos, ternos bem ajustados), este gentleman
de cabelos grisalhos, com um jeito chapliniano de andar e apetite
feroz, tinha sempre o sorriso nos lábios e fazia desviar
toda conversa literária para considerações
zombeteiras sobre a chuva e o tempo.
Era difícil de adivinhar que, por trás desta aparência
bonachona e simples, se escondia uma personalidade plural. Porque
Guimarães Rosa, escritor, médico e diplomata, também
teve tempo de ser um erudito, especialista em geografia, esoterismo
e botânica, e, segundo Luis Harss (1), um grande linguista
e filólogo, que não apenas conhecia o português
e as principais línguas européias, como o alemão,
o francês, o inglês, e lia o italiano, o sueco, o servo-croata
e o russo, mas tinha estudado a gramática e a sintaxe da
maior parte das outras línguas: húngaro, malaio, persa,
chinês, japonês, hindi.
Sua obra literária compreende poucos volumes: um livro de
poemas, várias coletâneas de contos - "Sagarana",
1946; "Corpo de Baile", 1956; "Primeiras Estórias",
1962; "Tutaméia (Terceiras Estórias)", 1967;
"Estas Estórias", 1969; "Ave Palavra",
1970 - e um romance, "Grande Sertão: Veredas"("Diadorim"),
publicado em 1956. Suas primeiras obras não tiveram quase
nenhuma repercussão no Brasil; a celebridade, hoje firmemente
assentada, não chegou senão com a publicação
de seu romance, que a crítica brasileira saudou de imediato
como uma obra-prima.
Em um ensaio célebre, W. H. Auden diz que o valor literário
de um livro pode ser mensurado pelo número de leituras diferentes
que ele permite fazer. Maravilhoso exemplo desta observação,
livro tão enigmático e múltiplo quanto seu
autor, "Grande Sertão: Veredas" é na verdade
a soma de várias obras de natureza muito diferente.
Uma leitura rápida, inocente, que se debruçasse unicamente
sobre a cascata de episódios que compõem o argumento
romanesco e saltasse alegremente os obstáculos e as dificuldades
estilísticas, não reteria senão a esplêndida
epopéia de costumes se desenrolando no sertão, uma
ação elaborada na observação rigorosa
das leis do romance: drama, exotismo, movimento, suspense, natureza
indomável, tipos insinuantes e brutais.
O ex-jagunço Riobaldo Tatarana, que se tornou rico proprietário
de terras depois de uma existência selvagem, evoca diante
de um ouvinte desconhecido sua vida perigosa de comparsa, tenente
e chefe de bandoleiros nos áridos desertos de Minas Gerais
no fim do último século, e ressuscita com nostalgia
os combates, os rigores, as proezas, as alegrias, os temores que
formaram sua vida passada. Este personagem tem alguma coisa de um
paladino de romance de cavalaria, de um mosqueteiro romântico
e de um aventureiro de faroeste. É verdade que sua narrativa
- do ponto de vista épico - é imperfeita, de uma parte,
porque Riobaldo, contando-a, não pára de subverter
o tempo que avança, impedindo suas palavras não em
linha reta mas em ziguezague, como uma serpente, e de outra parte,
porque o narrador abre parênteses, muito longos a fim de refletir
sobre a existência do diabo, a amizade, o amor e a morte,
e enunciar esotéricos postulados religiosos.
Mas tudo isso é de qualquer forma equilibrado pela magnificência
com a qual ele se estende sobre a vida e a alma do sertão,
descrevendo amorosamente suas árvores, sua flora, seus rios,
sua fauna, suas cidades, suas lendas, e pelo grande afresco humano
composto de rufiões temerários como João Ramiro
e Zé Bebelo, ou assustadores como o perverso Hermógenes,
o belo e ambíguo Diadorim, a furtiva Otacília. Reduzido
à anedota, "Grande Sertão: Veredas" é
um romance regionalista de grande fôlego, que não está
entretanto isento de certos defeitos característicos do gênero:
excesso na descrição, exagero "telúrico",
abuso de dados geográficos e informações folclóricas,
inverossimilhanças de certas situações.
Uma leitura mais maliciosa e mais atenta, que em lugar de se esquivar
afrontasse resolutamente a complexidade linguística do romance,
desvelaria que as paisagens inóspitas, a carne, o sangue,
os objetos pitorescos não são nem a matéria
profunda nem o conteúdo essencial de "Grande Sertão:
Veredas", mas sobretudo um pretexto, uma aparência, e
que a realidade expressa pelo autor não é nem material
nem histórica, mas abstrata e intemporal: verbal.
Porque o "élan" impetuoso e vital no monólogo
sem pausa de Riobaldo não provém da onda ininterrupta
de ações, homens e coisas que ele menciona, menos
ainda é dado por sua paixão homossexual, temerosa
e hesitante, por Diadorim: ele se alimenta da palavra, da expressão.
As águas desse rio sonoro de curso tumultuoso arrastam metáforas,
substantivos, adjetivos, expressões, verbos, modelados, manobrados,
organizados de tal modo que eles adquirem uma soberania e não
remetem senão à realidade que eles mesmos criaram
ao longo da narração de Riobaldo.
Assim como as cores de um quadro abstrato distanciam-se da realidade
de onde surgiram para integrar uma realidade distinta, ou mesmo
como os sons ganham numa peça de música uma natureza
autônoma, neste romance a linguagem conquistou sua independência,
ela basta a si mesma, é seu próprio começo
e seu próprio fim. Uma tal leitura, que se deixasse submeter
a um encantamento fonético, sucumbindo à magia verbal,
faria aparecer o romance de Guimarães Rosa como uma torre
de Babel miraculosamente suspensa acima da realidade humana, separada
dela e entretanto viva, um edifício mais próximo da
música (ou de uma certa poesia) que da literatura.
Romance de aventuras, labirinto verbal, estes dois aspectos de "Grande
Sertão: Veredas" não se excluem e o romance não
enfraquece apesar deles. O monólogo de Riobaldo trama em
desordem dúvidas e inquietudes, formula várias afirmações
obscuras sobre a existência do demônio com quem o narrador
fez ou crê ter feito ou quer fazer crer a seu ouvinte que
concluiu um pacto, ao longo de uma noite de tempestade, numa encruzilhada.
É bem possível que Riobaldo deva sua sorte - esta
sorte que lhe permitiu sair são e salvo dos combates, ser
um atirador de elite e o chefe do bando de jagunços, e se
tornar mais tarde um respeitável fazendeiro - a seu pacto
imaginário ou verídico com o Maligno. Da mesma forma,
sua paixão por Diadorim não é senão
uma armadilha tramada pelo Senhor das Trevas em cobrança
à dívida que Riobaldo contraiu com ele. Poderíamos
mesmo imaginar que não apenas Hermógenes, o traidor,
é um instrumento do demônio, mas que o são também
Joca Ramiro, Zé Bebelo, Quelemen, o próprio Riobaldo
e todos os homens e que a realidade inteira não é
senão uma projeção do inferno, o próprio
inferno.
O espírito satânico de Riobaldo aparece no romance,
como crivado, oculto detrás das frases, premeditadamente
fora de foco: mas ele está ali e bem ali. Riobaldo (ou o
autor) se contenta em lançar de tempos em tempos, em geral
nos momentos nevrálgicos da ação (durante o
cerco que liberar os homens de Hermogénes do bando de Zé
Bebelo, quando do processo instaurado por Joca Ramiro contra este
último, ou no momento em que os jagunços atravessam
a cidade golpeada por uma epidemia de varíola), um signo
fugidio mas indubitável, uma frase como um furtivo pé-de-bode,
uma alusão ou uma lembrança flutuando feito um repentino
odor de enxofre, que basta para provocar um sobressalto, um arrrepio,
indicando que alguma coisa ou alguém inatingível e
no entanto poderosamente real ronda à volta.
Concentrando uma atenção essencial sobre esta série
de alusões obscuras, contaminadas para um esoterismo simbólico,
sobre estes dois loucos que aparecem e desaparecem estrategicamente
na história, tecendo uma sutil tela luciferiana que recobre
a vida de Riobaldo e a travessia do sertão, "Grande
Sertão: Veredas" torna-se não um romance de aventuras
ou uma sinfonia, mas uma alegoria religiosa do mal, uma obra atravessada
por convulsões místicas tendo um distante parentesco
com a tradição do romance negro gótico inglês
("O Monge", "O Castelo de Otrante" etc.).
O verdadeiro tema de "Grande Sertão: Veredas" é
a possessão diabólica, disse um crítico (2)
em uma análise penetrante da obra de Guimarães Rosa,
e esta afirmação é perfeitamente válida
se fazemos nossa esta terceira leitura. Resulta que a realidade
mais profundamente refletida no livro não é nem a
conduta humana, nem a natureza, nem a palavra, mas a alma. A odisséia
de Riobaldo carrega em si, implícita, como um fio secreto
que a guia e a justifica, uma interrogação metafísica
sobre o bem e o mal. É uma máscara detrás da
qual está emboscada uma demonstração de poderes
de Satã sobre a Terra e sobre o homem. A anedota, a linguagem,
a estrutura do romance devem então ser consideradas como
chaves cuja significação profunda desemboca numa mística.
Nem obra de capa e espada, nem torre de Babel, "Grande Sertão:
Veredas" seria nesta perspectiva uma catedral cheia de símbolos,
uma espécie de templo maçônico.
Se tivesse que escolher entre os três romances que contêm
este livro, eu me decidiria pelo primeiro: um livro de aventuras
deslumbrante. Mas, naturalmente, esta escolha é toda teórica
porque, de fato, estes três livros diferentes são como
a santíssima trindade: um só Deus. Não é
exagero dizer que com o tempo outras leituras verão a luz
do dia, que outras leituras descobrirão neste livro dimensões
insuspeitas. Guimarães Rosa escreveu um romance ambíguo,
múltiplo, destinado a durar, dificilmente compreensível
na sua totalidade, enganador e fascinante como a vida imediata,
profundo e inesgotável como a própria realidade. Provavelmente,
é este o mais belo elogio que pode receber um criador.
|