MULHERES


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1984

Charles Bukowski

Publicamos nesta página uma seleção de trechos do livro "Mulheres" (Women), de Charles Bukowski, editado nos Estados Unidos em 1978 e que está sendo lançado no Brasil, pela Brasiliense (com tradução de Reinaldo Moraes). No livro, escrito dentro do estilo característico de Bukowski, tendo como personagem-narrador o "escritor, alcoólatra e marginal" Henry Chinaski (um alter-ego que Bukowski utiliza em seus livros autobiográficos; no fundo, ele mesmo), que conta suas aventuras amorosas. Quando lançado nos Estados Unidos, o livro imediatamente atingiu os 100 mil exemplares vendidos no país, enquanto atingia um número ainda maior de vendas na Europa.

*

Não lembro bem quando vi Lydia Vence pela primeira vez. Foi há cerca de seis anos, eu tinha acabado de largar um emprego de doze anos como funcionário dos Correios e estava tentando virar escritor. Estava morrendo de medo e bebia mais do que nunca. Tentava escrever meu primeiro romance. Bebia meio litro de uísque e uma dúzia de meias-cervejas todas as noites, enquanto escrevia. Fumava charutos baratos e datilografava e bebia e escutava música clássica no rádio até de madrugada. Fixara uma meta de dez páginas por noite, mas nunca sabia, até a manhã seguinte, quantas páginas tinha escrito. Levantava de manhã, vomitava, ia até a sala e conferia no sofá quantas folhas tinha ali. Sempre passavam das minhas dez. Às vezes tinha 17, 18, 23, 25 páginas. Claro que o trabalho de cada noite tinha que ser desbastado ou jogado fora. Gastei vinte e uma noites pra escrever meu primeiro romance.
Os proprietários do condomínio em que eu morava viviam nos fundos e achavam que eu era maluco. Todas as manhãs, ao acordar, tinha um saco enorme de supermercado na minha porta. O conteúdo variava, mas, em geral, tinha tomates, rabanetes, laranjas, cebolinhas, latas de sopa, cebolas. Uma ou outra noite bebia cerveja com eles até 4 ou 5 da madrugada. O velho se apagava, e a velha e eu ficávamos de mãos dadas, e eu dava uns beijos nela de vez em quando. Sempre dava um beijão nela na porta. Era enrugada pra danar, mas o que é que ela podia fazer? Era católica e ficava uma gracinha quando botava seu chapéu cor-de-rosa e saia pra igreja, domingo de manhã.

*

Os poemas, impressos em mimeógrafo, estavam grampeados e se intitulavam "DELLLLA". Li alguns. Eram interessantes, cheios de humor e sexualidade, porém mal escritos. Eram de Lydia e de suas três irmãs - todas tão joviais e maravilhosas e sensuais ali reunidas. Joguei fora as folhas e abri a garrafa de uísque. Estava escuro lá fora. O que o rádio mais tocava era Mozart e Brahms e o Beethô.
Um ou dois dias depois, recebi um poema de Lydia pelo correio. Era um longo poema que começava assim:
Saia daí, velho gigante,
Saia desse buraco escuro, velho gigante,
Saia pra luz do sol, venha ao nosso encontro e
Deixe a gente botar margaridas no seu cabelo...
O poema seguia em frente pra me dizer como seria bom dançar pelos campos com trêfegas criaturas femininas, que me trariam alegrias e o verdadeiro saber. Botei a carta numa gaveta do guarda-roupa.
Acordei na manhã seguinte com umas pancadas nos vidros da porta da frente. Eram 10h30.
- Saia fora - gritei.
- É Lydia.
- Tá legal. Espere um minuto.
Botei uma camisa, uma calça, e fui abrir. Daí, corri pro banheiro e vomitei. Tentei escovar os dentes, mas só consegui vomitar de novo - o gosto doce da pasta virou meu estômago. Voltei pra sala.
- Você está mal - disse Lydia. - Quer que eu saia?
- Não, não, eu tô legal. Sempre acordo desse jeito.
Lydia estava ótima. A luz atravessava a cortina e brilhava nela. Tinha uma laranja na mão que ela ficava jogando pro ar. A laranja rompia rolando a manhã luminosa de sol.
- Não posso ficar - disse ela -, mas queria te pedir uma coisa.
- Claro.
- Eu sou escultora. Quero esculpir sua cabeça.
- Tudo bem.
- Você vai ter que ir na minha casa. Eu não tenho ateliê. Vai ter que ser na minha casa. Isso não vai te botar nervoso, vai?
- Não.
Anotei seu endereço e as instruções pra chegar lá.
- Vê se aparece pelas onze da manhã. Os garotos chegam da escola no meio da tarde e atrapalham muito.
- Chego lá às onze - disse eu.

*

Sentei de frente pra Lydia, junto à mesa da cozinha. Entre os dois tinha um montão de argila. Ela começou a fazer perguntas.
- Seus pais ainda estão vivos?
- Não.
- Você gosta de Los Angeles?
- É a minha cidade favorita.
- Por que é que você escreve sobre as mulheres daquele jeito?
- Que jeito?
- Você sabe.
- Não sei não.
- Ora, eu acho uma vergonha um cara escrever tão bem como você e não saber nada sobre as mulheres.
Não respondi.
- Diabo! O que será que a Lisa fez com o...? - Ela começou a procurar alguma coisa por toda parte. - Ah, essas garotinhas que somem com os instrumentos da mamãe!
Lydia achou outro. "Esse vai ter que servir. Quieto agora; pode relaxar, mas fique quieto."
Eu a encarava. Ela trabalhava no monte de argila com um instrumento de madeira que tinha um laço de arame na ponta. Fazia gestos com o instrumento pra mim, por cima do monte de argila. Eu a observava. Seus olhos nos meus. Eram grandes, castanho-escuro. Até seu olho ruim, o tal que não combinava com o outro, era bonito. Lydia trabalhava. O tempo passava. Eu estava em transe. Então, ela falou: "Que tal uma folga? Tá a fim de uma cerveja?"
- Legal. Tô sim.

*

Uns dias mais tarde, de manhã, entrando no pátio interno do condomínio de Lydia, topei com ela que vinha chegando pelos fundos. Ela tinha saído pra ver sua amiga Tina, que morava num prédio da esquina. Estava elétrica naquela manhã, igual a vez que apareceu sozinha em casa com a laranja.
- Óóóóó - fez ela -, de camisa nova!
Era verdade. Comprara a camisa pensando nela, pensando em vê-la. Sabia que ela sabia disso e que ela estava me gozando, embora não ligasse.
Lydia abriu a porta e a gente entrou. A argila descansava no centro da mesa, sob um pano úmido. Ela tirou o pano. "Que cê acha?"
Lydia não me poupou. Lá estavam as cicatrizes, o narigão de alcoólatra, a boca de macaco, os olhos reduzidos a fendas; e lá estava o sorriso burro e satisfeito de um homem feliz, ridículo, que se sente um sortudo e nem sabe por quê. Ela tinha 30 e eu mais de 50. Não me importava.
- Sim senhora! - eu disse - Você acertou em cheio. Gosto dele. Mas, pelo jeito, já está quase acabado. Vou ficar deprimido quando terminar. Grandes manhãs e tardes foram essas...
- Isso interferiu muito na sua escrita?
- Nada; eu só escrevo depois que escurece. Nunca consigo escrever de dia.
Lydia apanhou o instrumento de modelagem e me olhou. "Não se preocupe. Ainda falta muito. Quero que ele fique bem legal."
Na primeira folga, ela pegou um meio-litro de uísque na geladeira.
- Ah! - fiz eu.
- Quanto? - perguntou, segurando um copo alto.
- Meio a meio.
Ela fez o drinque e eu engoli tudo.
- Andei ouvindo coisas sobre você - disse ela.
- Que coisas?
- Que você costuma chutar pra fora os caras que batem na sua porta. Que você bate nas suas mulheres.
- Bater nas minhas mulheres?
- É, me contaram.

*

Naquela época eu andava editando uma revistinha, "Abordagem Laxativa", se chamava. Tinha outros dois co-editores e a gente achava que estava imprimindo os melhores poetas do nosso tempo. E também alguns de outra espécie. Um dos editores era um retardado com ginásio incompleto, de um metro e oitenta e sete de altura, Kenneth Mulloch (preto), meio sustentado pela mãe, meio pela irmã. O outro editor era o Sammy Levinson (judeu), 27 anos, que vivia com os pais e era sustentado por eles.
Já estava tudo impresso. Agora, faltava colar e grampear as folhas nas capas.
- O que você tem que fazer - disse Sammy - é dar uma festa da colagem. Você entra com as bebidas e umas merdinhas pra comer e eles fazem o trabalho.
- Detesto festa - disse eu.
- Eu me encarrego dos convites - falou Sammy.
- Tudo bem - disse eu. E convidei Lydia.
Na noite da festa Sammy apareceu com as folhas já coladas. Ele era do tipo nervoso, tinha um tique de cabeça; não foi capaz de esperar pra ver seus poemas impressos. Colou sozinho a "Abordagem Laxativa" e depois grampeou as capas. Ninguém achou Kenneth Mulloch - provavelmente estava na prisão ou sendo procurado.
O pessoal chegou. Eu não conhecia quase ninguém. Fui até o apartamento da senhoria nos fundos do condomínio. Ela me atendeu na porta.
- Eu estou dando uma grande festa, senhora O'Keefe. Gostaria que a senhora e seu marido viessem. Tem muita cerveja e salgadinhos.
- Deus do céu, não é possível!
- Que foi?
- Eu vi essa turma entrando aí. Aquelas barbas e aqueles cabelões e aquelas roupas remendadas. Pulseiras e colares... parecem um bando de comunistas! Como é que você aguenta aquela gente?
- Eu também não aguento aquela gente, senhora O'Keefe. Só estamos bebendo cerveja e conversando. Nada de mais.
- Fique de olho neles. Essa corja é capaz até de roubar o encanamento.
E fechou a porta.
Lydia chegou tarde. Passou pela porta que nem uma atriz. A primeira coisa que eu reparei foi no seu chapelão de caubói com uma pluma de alfazema espetada do lado. Não falou comigo. Foi logo se sentando do lado de um rapaz, empregado de livraria, e começou a conversar animadamente com ele. Eu comecei a beber mais pesado e o meu papo perdeu um pouco de pique e de humor. O empregado da livraria era um tipo bem apanhado que pretendia virar escritor. Chamava-se Randy Evans e andava por demais atolado em Kafka pra ter alguma clareza literária. A gente publicou ele na "Abordagem Laxativa" pra não ferir seus sentimentos, e também pra garantir a distribuição da revista na livraria em que ele trabalhava.
Eu bebia minha cerveja e andava de um lado pro outro. Saí pela porta dos fundos, sentei no topo da escada que dava pra ruela de trás e fiquei olhando um gatão preto que tentava entrar numa lata de lixo. Desci até lá. O gato saltou da lata de lixo quando me aproximei. Ficou a mais ou menos um metro me olhando. Tirei a tampa da lata de lixo. O fedor era horrível. Vomitei na lata. Larguei a tampa no chão. O gato deu um salto e se equilibrou nas bordas da lata com as quatro patas tontas. Hesitou por um instante, e aí, luzindo sob a meia-lua, pulou pra dentro.
Lydia ainda estava de papo com Randy, e eu notei que os pés deles se tocavam debaixo da mesa. Abri mais uma cerveja.
Sammy divertia a patota. Eu era um pouco melhor que ele em matéria de fazer os outros rirem, mas não estava em boa forma naquela noite. Tinha lá uns 15 ou 16 homens e duas mulheres - Lydia e April. April fazia um curso de arte e era gorda. Estava espichada no chão. Depois de uma hora, mais ou menos, levantou e saiu com Carl, um malucão completamente chumbado de droga. Assim, ficaram os 15 ou 16 homens e Lydia. Achei meio litro de scotch na cozinha, fui pra porta dos fundos, fiquei lá dando uns goles.
Os caras foram indo embora, aos poucos, com o correr da noite. Até o Randy Evans se foi. No fim, sobraram apenas Sammy, Lydia e eu. Lydia conversava com Sammy. Sammy dizia coisas engraçadas. Consegui dar umas risadas. Daí, falou que tinha que ir embora.
- Por favor, não vai não, Sammy - disse Lydia.
- Deixe o garoto ir - eu disse.
- É, tenho que ir - respondeu Sammy.
Depois que Sammy saiu, Lydia falou: "Você não tinha nada que mandar ele embora. O Sammy é engraçado, é engraçado mesmo esse Sammy. Você deixou ele magoado.
- Mas é que eu quero ficar a sós com você, Lydia.
- Eu curti os seus amigos. Nunca me acontece de encontrar gente tão variada, como acontece com você. Eu gosto de gente!
- Eu não gosto.
- Eu sei que você não gosta. Mas eu gosto. As pessoas vêm até você. Quem sabe se não viessem você gostava mais delas.
- Não; quanto menos vejo, mais eu gosto delas.
- Você deixou o Sammy magoado.
- Ai, saco, ele foi pra casa, junto da mãe dele.
- Você tá é com ciúmes. Você é inseguro. Você acha que eu quero ir pra cama com todo homem com quem converso.
- Não acho, não. Escuta, que tal um drinquezinho?
Me levantei e preparei um pra ela. Lydia acendeu um long size e ficou bicando seu drinque. "Você fica bem à beça com esse chapéu", eu disse. "Essa pluma púrpura é um barato."
- É do meu pai esse chapéu.
- E ele não sente falta?
- Já morreu.

O autor
Guru dos beatniks, Charles Bukowski já não era "nik" na década de 50, quando tudo começou. Embora dentro do grupo ele não tivesse a projeção de Kerouac com seu "On The Road", veio a se tornar o mais popular de todos. Seu livro "Mulheres" (Women), quando lançado nos EUA, em 1978, vendeu mais de 100 mil exemplares - uma marca considerável para um escritor maldito, odiado pelos conservadores, pelas feministas e pela esquerda.
Henry Charles Bukowski Jr. nasceu a 16 de agosto de 1920 em Andernach, Alemanha, filho de pais alemães. Com dois anos sua família se transferiu para Los Angeles, que ele define como "a mais cruel das cidades do mundo". Sua infância foi uma espécie de pesadelo, oscilando entre a disciplina germânica de seus pais e a vida de adolescente "gauche". Tudo isso pesou para transformá-lo em marginal. O passo decisivo, no entanto, surgiu por um efeito do destino, que o marcou para sempre: aos 16 anos ele começou a sofrer de uma violenta crise de acne vulgaris, "o pior caso de espinhas que os médicos já tinham visto". Seu rosto se transformou numa chaga. Charles abandonou a escola para tratamento, e nunca mais voltou...
O jovem se tornou um nômade. Viajou por quase todos os estados americanos, fazendo "bicos", ganhando apenas o suficiente para dormir (mal), comer (mal) e beber (muito). Só em 1959, já quase quarentão, e com alguns poemas divulgados em revistas undergrounds, Bukowski consegue seu primeiro (e único) emprego regular, como funcionário de uma agência de correios de Los Angeles. Ali ele ficou por 14 anos. As memórias desse tempo ele compilou em "Cartas na Rua" (Post Office, já lançado no Brasil).
Em 1966, em uma visita do manager John Martin, da editora Black Sparrow Press, nasceu o Bukowski escritor profissional, com um contrato de 100 dólares semanais. O primeiro livro editado pela Black Sparrow foi "At Terror Street and Agony Way", com todos os poemas escritos até então. Depois vieram: "Exibitions, Ejaculations and General Tales of Ordinary Madness" - do qual foi extraído o conto que deu origem ao filme "Crônicas de um Amor Louco", de Marco Ferreri, com Ornella Muti e Ben Gazzara -; "Love is a Dog From Hell" (reunião de poemas); "Notes of a Dirty Old Man" (reunião de contos escritos para a revista "Open City" de Los Angeles); "Women"; "South of No North", e "Factotum".


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