Charles Bukowski
Publicamos
nesta página uma seleção de trechos do livro
"Mulheres" (Women), de Charles Bukowski, editado nos Estados
Unidos em 1978 e que está sendo lançado no Brasil,
pela Brasiliense (com tradução de Reinaldo Moraes).
No livro, escrito dentro do estilo característico de Bukowski,
tendo como personagem-narrador o "escritor, alcoólatra
e marginal" Henry Chinaski (um alter-ego que Bukowski utiliza
em seus livros autobiográficos; no fundo, ele mesmo), que
conta suas aventuras amorosas. Quando lançado nos Estados
Unidos, o livro imediatamente atingiu os 100 mil exemplares vendidos
no país, enquanto atingia um número ainda maior de
vendas na Europa.
*
Não
lembro bem quando vi Lydia Vence pela primeira vez. Foi há
cerca de seis anos, eu tinha acabado de largar um emprego de doze
anos como funcionário dos Correios e estava tentando virar
escritor. Estava morrendo de medo e bebia mais do que nunca. Tentava
escrever meu primeiro romance. Bebia meio litro de uísque
e uma dúzia de meias-cervejas todas as noites, enquanto escrevia.
Fumava charutos baratos e datilografava e bebia e escutava música
clássica no rádio até de madrugada. Fixara
uma meta de dez páginas por noite, mas nunca sabia, até
a manhã seguinte, quantas páginas tinha escrito. Levantava
de manhã, vomitava, ia até a sala e conferia no sofá
quantas folhas tinha ali. Sempre passavam das minhas dez. Às
vezes tinha 17, 18, 23, 25 páginas. Claro que o trabalho
de cada noite tinha que ser desbastado ou jogado fora. Gastei vinte
e uma noites pra escrever meu primeiro romance.
Os proprietários do condomínio em que eu morava viviam
nos fundos e achavam que eu era maluco. Todas as manhãs,
ao acordar, tinha um saco enorme de supermercado na minha porta.
O conteúdo variava, mas, em geral, tinha tomates, rabanetes,
laranjas, cebolinhas, latas de sopa, cebolas. Uma ou outra noite
bebia cerveja com eles até 4 ou 5 da madrugada. O velho se
apagava, e a velha e eu ficávamos de mãos dadas, e
eu dava uns beijos nela de vez em quando. Sempre dava um beijão
nela na porta. Era enrugada pra danar, mas o que é que ela
podia fazer? Era católica e ficava uma gracinha quando botava
seu chapéu cor-de-rosa e saia pra igreja, domingo de manhã.
*
Os
poemas, impressos em mimeógrafo, estavam grampeados e se
intitulavam "DELLLLA". Li alguns. Eram interessantes,
cheios de humor e sexualidade, porém mal escritos. Eram de
Lydia e de suas três irmãs - todas tão joviais
e maravilhosas e sensuais ali reunidas. Joguei fora as folhas e
abri a garrafa de uísque. Estava escuro lá fora. O
que o rádio mais tocava era Mozart e Brahms e o Beethô.
Um ou dois dias depois, recebi um poema de Lydia pelo correio. Era
um longo poema que começava assim:
Saia daí, velho gigante,
Saia desse buraco escuro, velho gigante,
Saia pra luz do sol, venha ao nosso encontro e
Deixe a gente botar margaridas no seu cabelo...
O poema seguia em frente pra me dizer como seria bom dançar
pelos campos com trêfegas criaturas femininas, que me trariam
alegrias e o verdadeiro saber. Botei a carta numa gaveta do guarda-roupa.
Acordei na manhã seguinte com umas pancadas nos vidros da
porta da frente. Eram 10h30.
- Saia fora - gritei.
- É Lydia.
- Tá legal. Espere um minuto.
Botei uma camisa, uma calça, e fui abrir. Daí, corri
pro banheiro e vomitei. Tentei escovar os dentes, mas só
consegui vomitar de novo - o gosto doce da pasta virou meu estômago.
Voltei pra sala.
- Você está mal - disse Lydia. - Quer que eu saia?
- Não, não, eu tô legal. Sempre acordo desse
jeito.
Lydia estava ótima. A luz atravessava a cortina e brilhava
nela. Tinha uma laranja na mão que ela ficava jogando pro
ar. A laranja rompia rolando a manhã luminosa de sol.
- Não posso ficar - disse ela -, mas queria te pedir uma
coisa.
- Claro.
- Eu sou escultora. Quero esculpir sua cabeça.
- Tudo bem.
- Você vai ter que ir na minha casa. Eu não tenho ateliê.
Vai ter que ser na minha casa. Isso não vai te botar nervoso,
vai?
- Não.
Anotei seu endereço e as instruções pra chegar
lá.
- Vê se aparece pelas onze da manhã. Os garotos chegam
da escola no meio da tarde e atrapalham muito.
- Chego lá às onze - disse eu.
*
Sentei
de frente pra Lydia, junto à mesa da cozinha. Entre os dois
tinha um montão de argila. Ela começou a fazer perguntas.
- Seus pais ainda estão vivos?
- Não.
- Você gosta de Los Angeles?
- É a minha cidade favorita.
- Por que é que você escreve sobre as mulheres daquele
jeito?
- Que jeito?
- Você sabe.
- Não sei não.
- Ora, eu acho uma vergonha um cara escrever tão bem como
você e não saber nada sobre as mulheres.
Não respondi.
- Diabo! O que será que a Lisa fez com o...? - Ela começou
a procurar alguma coisa por toda parte. - Ah, essas garotinhas que
somem com os instrumentos da mamãe!
Lydia achou outro. "Esse vai ter que servir. Quieto agora;
pode relaxar, mas fique quieto."
Eu a encarava. Ela trabalhava no monte de argila com um instrumento
de madeira que tinha um laço de arame na ponta. Fazia gestos
com o instrumento pra mim, por cima do monte de argila. Eu a observava.
Seus olhos nos meus. Eram grandes, castanho-escuro. Até seu
olho ruim, o tal que não combinava com o outro, era bonito.
Lydia trabalhava. O tempo passava. Eu estava em transe. Então,
ela falou: "Que tal uma folga? Tá a fim de uma cerveja?"
- Legal. Tô sim.
*
Uns
dias mais tarde, de manhã, entrando no pátio interno
do condomínio de Lydia, topei com ela que vinha chegando
pelos fundos. Ela tinha saído pra ver sua amiga Tina, que
morava num prédio da esquina. Estava elétrica naquela
manhã, igual a vez que apareceu sozinha em casa com a laranja.
- Óóóóó - fez ela -, de camisa
nova!
Era verdade. Comprara a camisa pensando nela, pensando em vê-la.
Sabia que ela sabia disso e que ela estava me gozando, embora não
ligasse.
Lydia abriu a porta e a gente entrou. A argila descansava no centro
da mesa, sob um pano úmido. Ela tirou o pano. "Que cê
acha?"
Lydia não me poupou. Lá estavam as cicatrizes, o narigão
de alcoólatra, a boca de macaco, os olhos reduzidos a fendas;
e lá estava o sorriso burro e satisfeito de um homem feliz,
ridículo, que se sente um sortudo e nem sabe por quê.
Ela tinha 30 e eu mais de 50. Não me importava.
- Sim senhora! - eu disse - Você acertou em cheio. Gosto dele.
Mas, pelo jeito, já está quase acabado. Vou ficar
deprimido quando terminar. Grandes manhãs e tardes foram
essas...
- Isso interferiu muito na sua escrita?
- Nada; eu só escrevo depois que escurece. Nunca consigo
escrever de dia.
Lydia apanhou o instrumento de modelagem e me olhou. "Não
se preocupe. Ainda falta muito. Quero que ele fique bem legal."
Na primeira folga, ela pegou um meio-litro de uísque na geladeira.
- Ah! - fiz eu.
- Quanto? - perguntou, segurando um copo alto.
- Meio a meio.
Ela fez o drinque e eu engoli tudo.
- Andei ouvindo coisas sobre você - disse ela.
- Que coisas?
- Que você costuma chutar pra fora os caras que batem na sua
porta. Que você bate nas suas mulheres.
- Bater nas minhas mulheres?
- É, me contaram.
*
Naquela
época eu andava editando uma revistinha, "Abordagem
Laxativa", se chamava. Tinha outros dois co-editores e a gente
achava que estava imprimindo os melhores poetas do nosso tempo.
E também alguns de outra espécie. Um dos editores
era um retardado com ginásio incompleto, de um metro e oitenta
e sete de altura, Kenneth Mulloch (preto), meio sustentado pela
mãe, meio pela irmã. O outro editor era o Sammy Levinson
(judeu), 27 anos, que vivia com os pais e era sustentado por eles.
Já estava tudo impresso. Agora, faltava colar e grampear
as folhas nas capas.
- O que você tem que fazer - disse Sammy - é dar uma
festa da colagem. Você entra com as bebidas e umas merdinhas
pra comer e eles fazem o trabalho.
- Detesto festa - disse eu.
- Eu me encarrego dos convites - falou Sammy.
- Tudo bem - disse eu. E convidei Lydia.
Na noite da festa Sammy apareceu com as folhas já coladas.
Ele era do tipo nervoso, tinha um tique de cabeça; não
foi capaz de esperar pra ver seus poemas impressos. Colou sozinho
a "Abordagem Laxativa" e depois grampeou as capas. Ninguém
achou Kenneth Mulloch - provavelmente estava na prisão ou
sendo procurado.
O pessoal chegou. Eu não conhecia quase ninguém. Fui
até o apartamento da senhoria nos fundos do condomínio.
Ela me atendeu na porta.
- Eu estou dando uma grande festa, senhora O'Keefe. Gostaria que
a senhora e seu marido viessem. Tem muita cerveja e salgadinhos.
- Deus do céu, não é possível!
- Que foi?
- Eu vi essa turma entrando aí. Aquelas barbas e aqueles
cabelões e aquelas roupas remendadas. Pulseiras e colares...
parecem um bando de comunistas! Como é que você aguenta
aquela gente?
- Eu também não aguento aquela gente, senhora O'Keefe.
Só estamos bebendo cerveja e conversando. Nada de mais.
- Fique de olho neles. Essa corja é capaz até de roubar
o encanamento.
E fechou a porta.
Lydia chegou tarde. Passou pela porta que nem uma atriz. A primeira
coisa que eu reparei foi no seu chapelão de caubói
com uma pluma de alfazema espetada do lado. Não falou comigo.
Foi logo se sentando do lado de um rapaz, empregado de livraria,
e começou a conversar animadamente com ele. Eu comecei a
beber mais pesado e o meu papo perdeu um pouco de pique e de humor.
O empregado da livraria era um tipo bem apanhado que pretendia virar
escritor. Chamava-se Randy Evans e andava por demais atolado em
Kafka pra ter alguma clareza literária. A gente publicou
ele na "Abordagem Laxativa" pra não ferir seus
sentimentos, e também pra garantir a distribuição
da revista na livraria em que ele trabalhava.
Eu bebia minha cerveja e andava de um lado pro outro. Saí
pela porta dos fundos, sentei no topo da escada que dava pra ruela
de trás e fiquei olhando um gatão preto que tentava
entrar numa lata de lixo. Desci até lá. O gato saltou
da lata de lixo quando me aproximei. Ficou a mais ou menos um metro
me olhando. Tirei a tampa da lata de lixo. O fedor era horrível.
Vomitei na lata. Larguei a tampa no chão. O gato deu um salto
e se equilibrou nas bordas da lata com as quatro patas tontas. Hesitou
por um instante, e aí, luzindo sob a meia-lua, pulou pra
dentro.
Lydia ainda estava de papo com Randy, e eu notei que os pés
deles se tocavam debaixo da mesa. Abri mais uma cerveja.
Sammy divertia a patota. Eu era um pouco melhor que ele em matéria
de fazer os outros rirem, mas não estava em boa forma naquela
noite. Tinha lá uns 15 ou 16 homens e duas mulheres - Lydia
e April. April fazia um curso de arte e era gorda. Estava espichada
no chão. Depois de uma hora, mais ou menos, levantou e saiu
com Carl, um malucão completamente chumbado de droga. Assim,
ficaram os 15 ou 16 homens e Lydia. Achei meio litro de scotch na
cozinha, fui pra porta dos fundos, fiquei lá dando uns goles.
Os caras foram indo embora, aos poucos, com o correr da noite. Até
o Randy Evans se foi. No fim, sobraram apenas Sammy, Lydia e eu.
Lydia conversava com Sammy. Sammy dizia coisas engraçadas.
Consegui dar umas risadas. Daí, falou que tinha que ir embora.
- Por favor, não vai não, Sammy - disse Lydia.
- Deixe o garoto ir - eu disse.
- É, tenho que ir - respondeu Sammy.
Depois que Sammy saiu, Lydia falou: "Você não
tinha nada que mandar ele embora. O Sammy é engraçado,
é engraçado mesmo esse Sammy. Você deixou ele
magoado.
- Mas é que eu quero ficar a sós com você, Lydia.
- Eu curti os seus amigos. Nunca me acontece de encontrar gente
tão variada, como acontece com você. Eu gosto de gente!
- Eu não gosto.
- Eu sei que você não gosta. Mas eu gosto. As pessoas
vêm até você. Quem sabe se não viessem
você gostava mais delas.
- Não; quanto menos vejo, mais eu gosto delas.
- Você deixou o Sammy magoado.
- Ai, saco, ele foi pra casa, junto da mãe dele.
- Você tá é com ciúmes. Você é
inseguro. Você acha que eu quero ir pra cama com todo homem
com quem converso.
- Não acho, não. Escuta, que tal um drinquezinho?
Me levantei e preparei um pra ela. Lydia acendeu um long size e
ficou bicando seu drinque. "Você fica bem à beça
com esse chapéu", eu disse. "Essa pluma púrpura
é um barato."
- É do meu pai esse chapéu.
- E ele não sente falta?
- Já morreu.
O
autor
Guru dos beatniks, Charles Bukowski já não era "nik"
na década de 50, quando tudo começou. Embora dentro
do grupo ele não tivesse a projeção de Kerouac
com seu "On The Road", veio a se tornar o mais popular
de todos. Seu livro "Mulheres" (Women), quando lançado
nos EUA, em 1978, vendeu mais de 100 mil exemplares - uma marca
considerável para um escritor maldito, odiado pelos conservadores,
pelas feministas e pela esquerda.
Henry Charles Bukowski Jr. nasceu a 16 de agosto de 1920 em Andernach,
Alemanha, filho de pais alemães. Com dois anos sua família
se transferiu para Los Angeles, que ele define como "a mais
cruel das cidades do mundo". Sua infância foi uma espécie
de pesadelo, oscilando entre a disciplina germânica de seus
pais e a vida de adolescente "gauche". Tudo isso pesou
para transformá-lo em marginal. O passo decisivo, no entanto,
surgiu por um efeito do destino, que o marcou para sempre: aos 16
anos ele começou a sofrer de uma violenta crise de acne vulgaris,
"o pior caso de espinhas que os médicos já tinham
visto". Seu rosto se transformou numa chaga. Charles abandonou
a escola para tratamento, e nunca mais voltou...
O jovem se tornou um nômade. Viajou por quase todos os estados
americanos, fazendo "bicos", ganhando apenas o suficiente
para dormir (mal), comer (mal) e beber (muito). Só em 1959,
já quase quarentão, e com alguns poemas divulgados
em revistas undergrounds, Bukowski consegue seu primeiro (e único)
emprego regular, como funcionário de uma agência de
correios de Los Angeles. Ali ele ficou por 14 anos. As memórias
desse tempo ele compilou em "Cartas na Rua" (Post Office,
já lançado no Brasil).
Em 1966, em uma visita do manager John Martin, da editora Black
Sparrow Press, nasceu o Bukowski escritor profissional, com um contrato
de 100 dólares semanais. O primeiro livro editado pela Black
Sparrow foi "At Terror Street and Agony Way", com todos
os poemas escritos até então. Depois vieram: "Exibitions,
Ejaculations and General Tales of Ordinary Madness" - do qual
foi extraído o conto que deu origem ao filme "Crônicas
de um Amor Louco", de Marco Ferreri, com Ornella Muti e Ben
Gazzara -; "Love is a Dog From Hell" (reunião de
poemas); "Notes of a Dirty Old Man" (reunião de
contos escritos para a revista "Open City" de Los Angeles);
"Women"; "South of No North", e "Factotum".
|