SOBRE A FILOSOFIA UNIVERSITÁRIA
Arthur
Schopenhauer
Nos
trechos que se seguem, Schopenhauer traça seu perfil, contra
a filosofia profissional e a teologia
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 19 de fevereiro de 1988
|
|
|
Os fins estatais da filosofia universitária foram, porém,
os que propiciaram à Hegelharia um favor ministerial tão
impar. Pois, para ela, o Estado era o "organismo ético
absolutamente perfeito", e ela fazia com que todo o fim da existência
humana se absorvesse no Estado. Poderia haver uma melhor orientação
para os futuros referendários e, em breve, funcionários
do Estado do que aquela segundo a qual toda a sua essência e
ser, como corpo e alma, pertencera completamente ao Estado, como a
abelha à colméia, e do que aquela, segundo a qual eles
não teriam de buscar outra coisa, nem neste nem num outro mundo,
a não ser cooperar como engrenagens úteis para manter
em funcionamento a grande máquina do Estado, este ultimus finis
bonorum (1)? Portanto, o referendário e o homem eram um e o
mesmo. Essa era uma autêntica apoteose do filisteísmo.
Mas a relação de tal filosofia universitária
para com o Estado é diferente de sua relação
para com a filosofia verdadeira e em si, que, sob esse aspecto, poderia
ser diferenciada, enquanto filosofia pura, daquela enquanto filosofia
aplicada. Ou seja, a filosofia pura não conhece nenhum outro
fim a não ser a verdade; donde se poderia concluir que qualquer
outro fim visado por seu intermédio é pernicioso para
ela. Sua meta superior é a satisfação daquela
nobre carência, por mim chamada de carência metafísica,
que é sentida íntima e vivamente pela humanidade em
todos os tempos, mas de modo mais forte quando, como agora, a reputação
da doutrina da fé está cada vez mais baixa. Aliás,
sendo adequada e pensada em relação à grande
massa do gênero humano, a doutrina da fé só pode
conter verdade alegórica, que ela, todavia, tem de fazer valer
como verdadeira senso próprio (2). Porém, com a difusão
cada vez maior de toda espécie de conhecimentos históricos,
físicos e mesmo filosóficos, aumenta o número
de homens para quem a verdade alegórica não pode mais
satisfazer, e esses exigem cada vez mais a verdade senso próprio.
Mas o que pode fazer diante desta demanda uma marionete de cátedra
"nervis alienis mobile" (3)? O que mais se alcançará
com a outorgada filosofia de casaca ou com ocas construções
de palavras, ou mesmo com as verdades mais comuns e compreensíveis,
transformadas, pela verborragia, em inapreensíveis flores de
retórica que nada dizem? Ou ainda, o que mais se alcançará
com o absoluto "nonsense" hegeliano? E, por outro lado,
se de fato chegasse do deserto o honesto João, vestido de peles
e alimentado de gafanhotos, que, tendo ficado longe de toda confusão
e se dedicado, com coração puro e total seriedade, à
pesquisa da verdade e viesse agora oferecer seus frutos, que recepção
deveria ele esperar daqueles negociantes de cátedras alugados
para os fins do Estado, que têm de viver da filosofia com mulher
e filhos, e cujo lema é primum vivere, deinde philosophari
(4)? Por causa disso, esses negociantes apossaram-se do mercado e
cuidaram para que ali nada valha a não ser aquilo que eles
deixam valer, pois méritos só existem, se eles e sua
mediocridade quiserem reconhecê-lo. É que eles levam
pelo cabresto a atenção do público, de resto
pequeno, que se ocupa com filosofia, pois esse mesmo público
não empregará seu tempo, fadiga e esforço em
coisas que não proporcionam deleite (como as produções
poéticas), mas sim instrução, e instrução
pecuniariamente infrutífera, sem antes ter plena garantia de
que tais coisas serão largamente recompensadas. Ora, de acordo
com a crença generalizada de que quem vive de alguma coisa
é também o que dela entende, o público espera
obter tal garantia dos especialistas que se portam confiantemente
nas cátedras, compêndios, diários e jornais literários
como verdadeiros mestres no assunto: são eles, pois, que degustam
e escolhem aquilo que é mais digno de atenção
e seu contrário. Oh, que será de ti, meu pobre João
do Deserto, se, com é de se esperar, aquilo que tu trazes não
estiver redigido. Segundo a convenção tácita
dos senhores da filosofia lucrativa! Eles te verão como alguém
que não compreendeu o espírito do jogo e ameaça
arruinar todos eles, como seu adversário e inimigo comum. Mesmo
se aquilo que trazes fosse a maior obra-prima do espírito humano,
jamais poderia encontrar clemência diante dos olhos deles. Pois
não estaria redigida ad normam conventionis (5), logo não
a modo de poderem torná-la objeto de sua conferência
de cátedra, para também dela viver. De fato, não
ocorre a um professor de filosofia verificar se um novo sistema estreante
é verdadeiro, mas apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas
da religião do Estado, com as intenções do governo
e com as opiniões dominantes da época. Depois disso,
ele decide sobre seu destino. Mas, não obstante, se o novo
sistema se impusesse, se despertasse a atenção do público
como instrutivo e contendo conclusões - e fosse por este considerado
digno de estudo -, nesta mesma medida ele acabaria com a atenção,
com o crédito e, o que é ainda pior, com a vendagem
da filosofia habilitada para a cátedra. Di meliora (6)! Por
isso, tal coisa não pode ocorrer, e aí tem de ser um
por todos e todos por um. O método e a tática para isso
é logo posto à disposição por um instinto
favorável que é concedido a todo ser para sua preservação.
Ou seja, o refutar e contradizer uma filosofia que vai contra a norma
convencionis é muitas vezes uma coisa arriscada, que não
se deve ousar nem em último caso - sobretudo onde se farejam
méritos e virtudes que seguramente não são alcançáveis
pelo diploma de professor -, pois desse modo as obras indexadas alcançariam
notoriedade e os curiosos acorreriam; mas então poderiam ser
feitas comparações extremamente desagradáveis
e o desenlace seria incerto. Unânimes, porém, como irmãos
de mesmo caráter e capacidade, os professores universitários
tratam tal produção inoportuna como "mon avenue".
Com o ar mais despreocupado, tomam o mais significativo como totalmente
insignificante, o profundamente pensado e presente por séculos
como não merecedor de discussão, para então sufocá-lo.
Mordem perfidamente os lábios e se calam, se calam com aquele
"silentium, quod livor indixerit", já denunciado
pelo velho Sêneca (7); mas enquanto se calam sobre isso, gralham
tanto mais alto em relação aos filhos abortivos do espírito
e às monstruosidades de seus camaradas, com a consciência
tranquila de que aquilo que ninguém sabe, é como se
não existisse, e de que as coisas do mundo valem pela aparência
e pelo nome, não por aquilo que são. Sendo esse o método
mais seguro e menos perigoso contra méritos, gostaria de recomendá-lo
a todos os cabeças ocas que buscam seu sustento em coisas para
as quais é necessário o mais alto talento, sem, todavia,
me responsabilizar por suas consequências posteriores.
No entanto, os deuses não devem ser invocados aqui de forma
nenhuma como num "inauditum nefas" (8): pois isso tudo é
apenas uma cena do espetáculo que temos diante dos olhos em
todas as épocas, em todas as artes e ciências, ou seja,
a velha luta daqueles que vivem para a coisa com aqueles que dela
vivem, ou daqueles que a são, com aqueles que a representam.
Para os primeiros, ela é o fim para o qual sua vida é
mero meio; para os outros, o meio, isto é, a penosa condição
para a vida, o bem-estar, a fruição, a felicidade -
as únicas coisas nas quais reside sua verdadeira seriedade:
porque aqui está traçado, pela natureza, o limite de
sua esfera de ação. Quem quiser ver isso exemplificado
e conhecê-lo mais de perto, deve estudar a história da
literatura e ler as biografias dos grandes mestres em todo engenho
e arte. Ali verá que isso foi assim em todos os tempos e compreenderá
que assim também há de permanecer. No passado, isso
é reconhecido por todos; no presente, por quase ninguém.
As páginas resplandecentes da história da literatura
são, quase sem exceção, as trágicas. Em
todas as disciplinas, elas nos mostram como, via de regra, o mérito
teve de esperar até que os tolos tenham deixado de sê-lo,
o banquete tenha chegado ao fim e todos tenham ido para a cama: é
então que o mérito se levanta da noite profunda, como
um fantasma, para finalmente, ainda que como sombra, tomar seu lugar
de honra usurpado.
Entretanto, temos de lidar aqui apenas com a filosofia e seus representantes.
Em primeiro lugar, constatamos que, desde sempre, muito poucos filósofos
foram professores de filosofia e, proporcionalmente, ainda menos professores
de filosofia, filósofos. Daí se poderia dizer que, do
mesmo modo que os corpos idiolétricos não são
condutores de eletricidade, também os filósofos não
são professores de filosofia. De fato, esse cargo põe
mais barreiras que qualquer outro para aquele que pensa por si próprio.
Pois a cátedra de filosofia de certo modo um confessionário
público, onde se faz profissão de fé coram populo
(9). Logo, para a obtenção efetiva de conhecimentos
mais fundamentais ou mesmo mais profundos, ou seja, para se tornar
verdadeiramente sábio, quase nada é tão contrário
quanto a coerção constante de parecer sábio,
o alardear de pretensos conhecimentos diante de alunos ávidos
em aprender e ter respostas prontas para todas as questões
imaginárias. Mas o pior é que, a todo pensamento que
de algum modo ainda ocorra a um homem em tal situação,
logo lhe assalta a preocupação de saber se tal pensamento
poderia convir às intenções dos superiores: isso
paralisa tanto seu pensar, que os próprios pensamentos já
não ousam ocorrer. A atmosfera de liberdade é indispensável
à verdade. Sobre a exceptio, quae firmat regulam (10), ou seja,
sobre o fato de Kant ter sido professor, já mencionei acima
(11) o necessário, e acrescento apenas que também a
filosofia de Kant ter-se-ia tornado mais elevada, decidida, pura e
bela, se ele não tivesse se investido naquela cátedra.
Embora ele, mui sabiamente, tivesse mantido o filósofo o mais
longe possível do professor, já que não expunha
sua própria doutrina na cátedra (12).
Fazendo, porém, uma retrospectiva dos pretensos filósofos
que entraram em cena no meio século depois de encerrada a atividade
de Kant, infelizmente não vejo nenhum a quem eu pudesse dizer
em seu louvor que sua verdadeira e total seriedade tivesse sido a
pesquisa da verdade: pelo contrário, observo todos eles (ainda
que nem sempre tenham clara consciência) pensando em aparecer,
em causar efeito, em se impor e até mistificar, esforçando-se
para obter o aplauso dos superiores e, em seguida, dos estudantes
- sempre com o objetivo último de deglutir o rendimento da
coisa com mulher e filhos. Mas isso está bem de acordo com
a natureza humana, que, como toda natureza animal, só conhece
como fins imediatos o comer, o beber e o cuidado da cria, mas que
recebeu ainda, como apanágio especial, a ambição
de brilhar e aparecer. Ora, a primeira condição para
produções verdadeiras e genuínas na filosofia,
como na poesia e nas belas artes, é, pelo contrário,
uma inclinação completamente anôlama que, contra
a regra da natureza humana, põe, no lugar do esforço
subjetivo para o bem próprio, um esforço plenamente
objetivo, dirigido para uma produção que lhe é
exterior, esforço que, por isso mesmo, é chamado apropriadamente
de excêntrico e também às vezes escarnecido como
quixotismo.
|
Sobre
a Teologia |
... o tema essencial é próprio da metafísica
entre os filósofos de cátedra é a explicação
da relação de Deus para com o mundo: as mais prolixas
discussões sobre este tema enchem seus manuais. Acreditam-se
empregados e pagos, sobretudo, para tornar claro este ponto, e aí
é divertido ver o quão sisuda e eruditamente falam do
absoluto ou de Deus, portando-se bem seriamente como se de fato soubessem
algo do assunto: isso faz lembrar a seriedade com que as crianças
brincam. Então surge, a cada feira de livros, uma nova metafísica
que, consistindo num relatório minucioso sobre o bom Deus,
explica como ele tem passado e como chegou a fazer, parir ou, sabe-se
lá como, produzir o mundo - dando a impressão de que
recebem notícias fresquinhas sobre ele de meio em meio ano.
Alguns caem, porém, numa confusão de efeito altamente
cômico. É que têm de ensinar um Deus inteiramente
pessoal, tal como aparece no Velho Testamento - e eles sabem disso.
Mas, por outro lado, há cerca de quarenta anos o panteísmo
de Espinosa, segundo o qual a palavra Deus é sinônimo
de mundo, tornou-se predominante e virou moda entre os eruditos e
até entre os apenas cultos: ora, tampouco desejam rejeitar
inteiramente esta doutrina, não se permitindo, porém,
estender a mão até esta iguaria proibida. Então
procuram ajudar-se com seu recurso habitual: frases obscuras, emaranhadas
e confusas, palavrório oco, em que se viram e reviram penosamente;
vêem, então, alguns asseverar de um só fôlego
que Deus é total, infinitamente e de longe, bem de longe, diferente
do mundo, mas ao mesmo tempo a ele estreitamente ligado e unido, ou
seja, que está enterrado nele até as orelhas: por isso,
fazem-me lembrar todas as vezes do tecelão Botton do "Sonho
de uma Noite de Verão", que promete rugir como um apavorante
leão, mas, ao mesmo tempo, trinar tão docemente, como
só um rouxinol pode fazê-lo. Executando isso, caem na
mais extraordinária confusão: é que afirmam não
haver nenhum lugar para Deus fora do mundo; mas já que também
não podem usá-lo no mundo, fazem o roque com ele de
lá para cá e da cá para lá, até
perder as duas posições (13).
Por outro lado, a "Crítica da Razão Pura",
com suas provas a priori da impossibilidade de todo conhecimento de
Deus, é para eles uma tolice pela qual não se deixam
enganar: sabem para que existem. A objeção de que não
se pode pensar nada mais não-filosófico do que falar
sem cessar sobre a existência de algo de que não se tem
comprovadamente nenhum conhecimento, e de cuja essência não
se tem nenhum conceito - é para eles uma réplica impertinente:
sabem para que existem. Sou para eles, reconhecidamente, um dos que
não merece sua deferência e atenção, e,
pela desconsideração total das minhas obras, pretenderam
evidenciar aquilo que eu sou (se bem que, com isso, evidenciaram justamente
aquilo que eles são): como tudo que produzi durante trinta
e cinco anos, também será falar para as paredes se eu
lhes disser que Kant não estava brincando, que a filosofia
não é nem jamais poderá ser, séria e efetivamente,
teologia, pois é antes algo total e completamente diferente
dela. Como todas as outras ciências são reconhecidamente
corrompidas pela intromissão da teologia, assim também
o é a filosofia, e, na verdade, em seu grau máximo,
como testemunha a sua história. Que isso valha até mesmo
para a moral, eu o demonstrei claramente na minha dissertação
sobre o fundamento dela (14). Por isso, esses senhores agiram sorrateiramente
também em relação a esta obra, fiéis à
sua tática de resistência passiva. Ora, a teologia recobre
com seu véu todos os problemas da filosofia e torna, com isso,
impossível não só sua solução,
como até mesmo sua compreensão. Portanto, como se disse,
a "Crítica da Razão Pura" foi rigorosamente
a carta de demissão da até então ancilia theologiae
(15), que, com isso, abandonou para sempre o serviço de sua
severa senhora. Desde então, esta teve de contentar-se com
um mercenário que veste ocasionalmente o libré abandonado
pelo antigo serviçal, apenas para manter as aparências:
como na Itália, onde tais substitutos são vistos sobretudo
aos domingos, e são por isso chamados pelo nome de "domenichini".
Mas na filosofia universitária as críticas e argumentos
de kant tiveram de soçobrar. Pois ali isso significa: "Hoc
volo, hoc iubeco, stat pro ratione voluntas" (16), a filosofia
deve ser teologia, mesmo que a impossibilidade disso fosse provada
por vinte Kantes; pois sabemos para que existimos: existimos in maioirem
Dei gloriam (17). Todo professor de filosofia é, tanto quanto
Henrique 8°, um defensor fidei (18) e reconhece nisso sua primeira
e principal vocação. Depois de Kant ter cortado o nervo
de todas as provas possíveis da teologia - tão incisivamente
que desde então ninguém mais pôde meter-se com
elas -, o esforço filosófico, em quase cinquenta anos,
tem consistido nas diversas tentativas de insinuar, sutil e astuciosamente,
a teologia, e os escritos filosóficos nada mais são,
na sua maioria, do que tentativas infrutíferas de reanimar
um cadáver sem vida. Assim, por exemplo, os senhores da filosofia
lucrativa descobriam no ser humano uma consciência de Deus,
que até então tinha passado despercebida de todo mundo,
e, encorajados pelo seu acordo recíproco e pela inocência
do público mais próximo, jogavam com ela atrevida e
temerariamente, até que por fim seduziram os honestos holandeses
da universidade de Leiden, de tal forma que estes, tomando as tergiversações
dos professores de filosofia por progressos da ciência, instituíram
bem ingenuamente, no dia 16 de fevereiro de 1844, o concurso sobre
a questão: "Quid statuendum de ensu Dei, qui dicitir menti
humanae indito" etc. (19). Em virtude de tal "consciência
de Deus", aquilo que todos os filósofos até Kant
se esfaltaram para provar seria algo imediatamente consciente. Mas
que simplórios deveriam ter sido todos aqueles filósofos
de outrora, que se esforçaram durante toda a sua vida para
aduzir provas a uma coisa da qual já somos conscientes, isto
é, a conhecemos mais imediatamente do que duas vezes dois quatro,
para o que ainda se exige reflexão. Querer provar tal coisa
seria o mesmo que querer provar que os olhos veêm, os ouvidos
ouvem e o nariz, cheira. Mas então que rebanho irracional não
seriam os budistas, seguidores da principal religião da terra
segundo o número de seus adeptos? Seu zelo religioso é
tão grande quem no Tibete, quase um sexto dos homens pertence
à casta sacerdotal, passando a viver em celibato, e sua doutrina
da fé, embora suporte e apoie uma moral altamente pura, elevada,
caritativa e rigorosamente ascética (que não se esqueceu
dos animais, como a moral cristã), não só é
decididamente ateísta, mas até recusa expressamente
o teísmo. A personalidade é um fenômeno que, aliás,
só nos é conhecido a partir de nossa natureza animal
e, por isso, dela separada, não é mais claramente pensável:
fazer de tal fenômeno origem e princípio do mundo é
um enunciado que não entra imediatamente na cabeça de
todos, e menos ainda o fato de que ele já estaria na cabeça
de todos e já viveria na nossa natureza animal. Em contrapartida,
um Deus impessoal é uma mera peta de professores de filosofia,
uma contradictio in adiecto, uma palavra vazia para satisfazer os
que não pensam ou para tranquilizar os vigilantes.
De fato, os escritos dos nossos filósofos universitários
respiram o mais vivo zelo pela teologia; e, ao contrário, o
menor pela verdade. Pois, sem recato diante dela e com uma audácia
inaudita, empregam-se e acumulam-se sofismas, insinuações,
distorções e asserções falsas, e são
até mesmo, como se disse acima, falsamente atribuídos,
ou melhor, exigidos da razão conhecimentos supra-sensíveis
imediatos - ou seja, idéias inatas -; tudo isso única
e exclusivamente para revelar a teologia: só teologia! Só
teologia! teologia, a qualquer preço! Eu gostaria de oferecer
despretensiosamente à reflexão desses senhores o fato
de que, embora a teologia possa ser de grande valor, conheço
algo que ainda é sempre mais valioso, a saber, a honestidade
- a honestidade, tanto no modo de vida como no pensar e ensinar; eu
não a venderia por nenhuma teologia.
Mas no estado em que as coisas estão, quem tomou isso a sério,
junto com a "Crítica da Razão Pura"; quem
pensou honradamente e não possui teologia para levar ao mercado,
tem de sair perdendo diante daqueles senhores. Mesmo se trouxesse
a coisa mais excelente já vista pelo mundo e servisse à
mesa toda a sabedoria do céu e da terra, eles, todavia, desviariam
olhos e ouvidos se não fosse teologia. Quanto mais mérito
tiver o feito, mais despertará, não a admiração,
mas o rancor deles, mais oporão a ele uma resistência
determinadamente passiva, mais pérfido será o silêncio
com que procurarão abafá-lo, mas, ao mesmo tempo, mais
altos os encômios que entoarão aos encantadores filhos
do espírito de seus camaradas ricos de pensamentos, para que,
com isso, não triunfe a voz da inteligência e da sinceridade
por eles odiada. Aliás, assim o exige, nesta época de
teólogos céticos e de filósofos crédulos,
a política daqueles senhores que, com mulher e filhos, se nutrem
da ciência, ciência a qual uma pessoa como eu sacrifica
todas as suas forças durante toda a vida. Pois o que lhes importa,
de acordo com a advertência de seus superiores, é - cada
qual na sua linguagem, locução e disfarce - a filosofia
como teologia especulativa, e declaram, de forma bem ingênua,
que a caça à teologia é o alvo essencial da filosofia.
Eles nada sabem do fato de que se deve considerar o mundo (junto com
a consciência na qual ele se apresenta) como o único
dado, o problema, o enigma da antiga esfinge, diante da qual nos postamos
com ousadia. Eles ignoram, com esperteza, que a teologia, se desejar
entrar na filosofia, deve primeiro, como todas as outras doutrinas,
apresentar sua credencial, que será depois examinada no cartório
da "Crítica da Razão Pura", a qual mantém
ainda seu total prestígio junto a todos os pensadores, nada
tendo perdido dele, apesar das caretas cômicas que os filósofos
de cátedra de hoje esforçam em lhe fazer. Portanto,
sem credencial válida diante da "Crítica",
a teologia não obtém permissão de entrada e não
deve obtê-la nem por ameaças, nem por astúcia,
nem por mendicância, alegando para isso que os filósofos
de cátedra não conseguem vender nenhuma outra coisa
- então que façam o favor de fechar sua butique. Pois
a filosofia não é igreja nem religião. A filosofia
é um cantinho no mundo só acessível a poucos,
onde a verdade, em toda parte sempre odiada e perseguida, uma vez
livre de toda pressão e coerção, deve como que
celebrar suas saturnais onde também o escravo pode falar livremente,
ter até prerrogativas e a última palavra; ela é
o cantinho onde a verdade deve dominar absolutamente sozinha, nada
admitido a seu lado. Ora, já que o mundo todo e tudo nele é
pleno interesse e, na maioria das vezes, interesse mesquinho, ordinário
e ruim, só um cantinho deve decididamente ficar livre dele
e estar aberto tão-só ao conhecimento das relações
mais importantes e urgentes de todas - isso é a filosofia.
Ou se entende isso de outra forma? Então, tudo é diversão
e comédia "como se tem frequentemente dado" (20).
Certamente, para julgar com base nos compêndios dos filósofos
de cátedra, deveríamos antes pensar que a filosofia
seria um guia para a devoção, um instituto para formar
beatos, pois, na maioria das vezes, a teologia especulativa é
pressuposta abertamente como o fim e o alvo essencial da questão,
e se navega para ela a todo pano. Mas é certo que todo e qualquer
artigo da fé causa um dano decisivo para a filosofia, seja
ele introduzido aberta e francamente nela, como acontecia na escolástica,
seja contrabandeando através de petitiones principii, axiomas
falsos, fontes internas de conhecimento inventadas, consciências
de Deus, provas ilusórias, frases empoladas e galimatias, como
é de uso hoje em dia, porque tudo isso torna impossível
a compreensão clara, descompromissada e puramente objetiva
do mundo e da nossa existência, que é a primeira condição
de toda investigação da verdade.
Expor, sob o nome e firma da filosofia, mas em roupagens estranhas,
os dogmas fundamentais da religião do Estado, que é
depois intitulada com uma expressão digna de um Hegel - "a
religião absoluta" -, pode ser uma coisa muito útil,
desde que sirva para adequar melhor os estudantes aos fins do Estado,
como também firmar na fé o público leitor; mas
vender isso por filosofia é o mesmo que vender uma coisa por
aquilo que ela não é. Se isso e tudo o que foi dito
acima mantêm o seu avanço imperturbável, a filosofia
universitária tem de se tornar cada vez mais uma remora para
a verdade. Pois todos os filósofos estão perdidos, quando
se toma, como escala de seu juízo e fio de prumo de suas proposições,
outra coisa além da verdade, verdade que é tão
difícil de alcançar mesmo com toda investigação
e fadiga da força espiritual mais elevada. Segue-se daí
que a verdade se torna uma mera "fable convenue", como Fontenelle
chama a História. Também nunca se dará um só
passo na solução dos problemas que nos são colocados,
de todos os lados, por nossa existência tão infinitamente
enigmática, se filosofa segundo um alvo predeterminado. Mas
ninguém negará que este seja o caráter genérico
das diferentes espécies da atual filosofia universitária.
|
Notas
|
1. "O último fim dos bons" (NT).
2. "Em sentido próprio" (NT).
3. "Movida por fios alheios". Lohneysen indica que
a expressão é de Horácio, "Sermones",
2, 7, 82. (NT).
4. "Primeiro viver, depois filosofar", (NT).
5. "De acordo com a norma convencional". (NT).
6. "Deus me livre!" Segundo Lohneysen: Virgilio,
"Georgica", 3, 513. (NT).
7. "Silêncio que a inveja impôs". Sêneca,
"Epistulae", 79. (NT).
8. "Crime inaudito". (NT).
9. "Na presença do povo". (NT).
10. "Exceção que confirma a regra".
(NT).
11. Em trecho anterior ao da presente tradução.
(NT).
12. C. Rosenkranz. "História da Filosofia Kantiana",
pág. 148. (NA).
13. De uma confusão análoga é que surge
o elogio que me fazem alguns deles, para salvar a honra de seu bom
gosto, já que agora minha luz já não está
mais oculta: mas apressam-se em acrescentar ao elogio a afirmação
de que eu não tenho razão na questão principal,
pois se guardarão, como é de praxe entre eles, de concordar
com uma filosofia que é totalmente avessa a uma mitologia judáica,
magnificamente adornada e escondida num palavrório empolado
(NA).
14. "Sobre o Fundamento da Moral" - escrito não
premiado pela Sociedade Real de Ciências da Dinamarca, em Kopenhagen,
30 de janeiro de 1840. Esta dissertação foi publicada
junto com o escrito "Sobre a Liberdade da Vontade" nos "Dois
Problemas Fundamentais da Ética" (S.W., tomo 4, pág.
481). Veja-se pág. 49, nota 64, e pág. 75, nota 86,
da presente tradução (NT).
15. "Serva da teologia" (NT).
16. "Assim quero, assim decreto, que o querer fique no
lugar do fundamento". Segundo Lohneysen, a frase é de
Juvenal, "Saturarum", livro 4,223 (NT).
17. "Para a maior glória de Deus" (NT).
18. "Um defensor da fé" (NT).
19. "O que se pode determinar sobre a consciência
de Deus, que é dita inata à mente humana?" (NT).
20. Goethe, "Fausto", primeira parte, 529 (os versos
dizem: "WAGNER - Quantas vezes tenho ouvido declarar / Que um
comediante pode até um padre ensinar / FAUSTO - Pois sim, sendo
também um padre um comediante; / Como se tem frequentemente
dado". Trad. Jenny Klabin Segall, obra citada, pág. 46
(NT).
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|