LANÇA-PERFUME, MUITA ALEGRIA NOS "ANOS INOCENTES"

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 1985


"Ao umedecer de novo o lenço, para não interromper o bem-estar e a sensação de poder, Nando lançou um olhar aos companheiros e viu que todos ressonavam. Ramiro no sofá, lenço chapado na cara como um alegre morto, Vanda, Falua e Sônia cada uma numa poltrona, lenço no colo e bisnaga abandonada no assento. Antes de aspirar o lenço gelado, Nando viu na mesa do único abajur aceso ao seu lado, a bisnaga de vidro brilhando com um esplendor de diamante, palpitando como o revólver de Hosana. Entendia tudo e tinha nas mãos vida e morte. Não ia perder tempo fixando naquele instante ciência tão inesquecível. Cheirou guloso e a plenos pulmões a friagem perfumosa. Dzim-dzim-dzim nos ouvidos".
Enquanto Antônio Callado escrevia essa passagem de "Quarup", na Fazenda de Santa Luisa, em Petrópolis, meados dos anos sessenta, lança-perfume era definitivamente proibido no Brasil do general Humberto de Alencar Castello Branco.
O primeiro a decretar que "são proibidos em todo o território nacional a fabricação, o comércio e o uso de lança-perfumes" foi o presidente Janio Quadros, em fevereiro de 61. Durante todo o período dito revolucionário o inocente cheiro de Carnaval, introduzido no Brasil pelos franceses no começo do século, tornou-se um perigoso caso de Polícia.
Mas quem ainda tem algum resquício de esperança de que o velho lança-perfume volte a ser liberado agora que estamos entrando na Nova República, pode ir tirando o cavalinho da chuva, não esquecendo que a lei prevê pena de três a quinze anos de reclusão para quem "utiliza local, tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância ou consente que outrem dele se utilize para uso indevido de entorpecente". E, no Brasil, o cloreto de etila, matéria prima do lança-perfume, é considerado entorpecente.
A alegria dos "anos inocentes" certamente não voltará, pelo menos nos próximos carnavais, sob o governo Tancredo Neves. Em outubro de 63, o decreto de Jânio Quadros foi refeito e renovado pelo então primeiro-ministro Tancredo Neves. Nada indica que, 22 anos depois, o agora presidente escolhido pelo Colégio Eleitoral tenha mudado de idéia.
De anestésico usado por dentistas, passando pelas prises dos personagens de Callado, até dar cadeia, a história do lança-perfume daria um belo romance. Começa que foi descoberto por acaso. Um certo Chatenoud, funcionário do laboratório de Gillard Monnet e Cartier (mais tarde, SCUR - Société Chimique des Usines du Rhône, matriz da Rhodia brasileira), em La Plaine, na França, fez uma mistura acidental de cloreto de etila e violeta sintética, que lhe sugeriu a idéia de utilizar o produto resultante nas ampolas de Kelene.
O Kelene era um anestésio fornecido aos médicos em ampolas fechadas a fogo, às quais se adaptava uma tampinha móvel, dispositivo patenteado pela SCUR, em 1890. A idéia de Chatenoud foi transmitida por Monnet a Maisonnier, encarregado das experiências na perfumaria Bourjois.
No início, não se acreditava muito no êxito da descoberta acidental, mas, por via das dúvidas, a SCUR depositou a patente de um produto com a marca "Rodo" - a palavra odor ao contrário. O ceticismo tinha razão de ser: apresentado ao mundo na Exposição Universal de Genebra, em 1897, o lança-perfume fracassou.
Foi aí que o Brasil entrou na história. Um brasileiro que passou pela exposição percebeu logo que no seu País aquela novidade faria o maior sucesso no Carnaval - e não deu outra. Em apenas um ano - 1909 -, 630 mil unidades de lança-perfume eram exportadas para o Brasil.
A festa que fizeram foi tamanha que o governo começou a ficar preocupado - não exatamente pelas mesmas razões de Jânio Quadros, mas porque via suas reservas em francos baixarem rapidamente. No começo de 1914, já não se podia exportar lança-perfumes para o Brasil, embora a produção e procura continuassem a crescer. Os direitos aduaneiros foram aumentados a ponto de tornar quase proibido o comércio.
Só a 19 de dezembro de 1919, às 14 horas, no Consulado Geral do Brasil em Paris, seria fundada a Companhia Quimica Rhodia Brasileira. Rodo, Flirt, Rodo-metálico, Rigoletto e Rodouro - as diferentes marcas de lança-perfumes produzidas pela Rhodia - passaram a fazer parte dos inesquecíveis carnavais dos "anos inocentes", até que um dia apareceu Jânio Quadros e o proibiu.

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