"Ao
umedecer de novo o lenço, para não interromper o bem-estar
e a sensação de poder, Nando lançou um olhar
aos companheiros e viu que todos ressonavam. Ramiro no sofá,
lenço chapado na cara como um alegre morto, Vanda, Falua
e Sônia cada uma numa poltrona, lenço no colo e bisnaga
abandonada no assento. Antes de aspirar o lenço gelado, Nando
viu na mesa do único abajur aceso ao seu lado, a bisnaga
de vidro brilhando com um esplendor de diamante, palpitando como
o revólver de Hosana. Entendia tudo e tinha nas mãos
vida e morte. Não ia perder tempo fixando naquele instante
ciência tão inesquecível. Cheirou guloso e a
plenos pulmões a friagem perfumosa. Dzim-dzim-dzim nos ouvidos".
Enquanto Antônio Callado escrevia essa passagem de "Quarup",
na Fazenda de Santa Luisa, em Petrópolis, meados dos anos
sessenta, lança-perfume era definitivamente proibido no Brasil
do general Humberto de Alencar Castello Branco.
O primeiro a decretar que "são proibidos em todo o território
nacional a fabricação, o comércio e o uso de
lança-perfumes" foi o presidente Janio Quadros, em fevereiro
de 61. Durante todo o período dito revolucionário
o inocente cheiro de Carnaval, introduzido no Brasil pelos franceses
no começo do século, tornou-se um perigoso caso de
Polícia.
Mas quem ainda tem algum resquício de esperança de
que o velho lança-perfume volte a ser liberado agora que
estamos entrando na Nova República, pode ir tirando o cavalinho
da chuva, não esquecendo que a lei prevê pena de três
a quinze anos de reclusão para quem "utiliza local,
tem a propriedade, posse, administração, guarda ou
vigilância ou consente que outrem dele se utilize para uso
indevido de entorpecente". E, no Brasil, o cloreto de etila,
matéria prima do lança-perfume, é considerado
entorpecente.
A alegria dos "anos inocentes" certamente não voltará,
pelo menos nos próximos carnavais, sob o governo Tancredo
Neves. Em outubro de 63, o decreto de Jânio Quadros foi refeito
e renovado pelo então primeiro-ministro Tancredo Neves. Nada
indica que, 22 anos depois, o agora presidente escolhido pelo Colégio
Eleitoral tenha mudado de idéia.
De anestésico usado por dentistas, passando pelas prises
dos personagens de Callado, até dar cadeia, a história
do lança-perfume daria um belo romance. Começa que
foi descoberto por acaso. Um certo Chatenoud, funcionário
do laboratório de Gillard Monnet e Cartier (mais tarde, SCUR
- Société Chimique des Usines du Rhône, matriz
da Rhodia brasileira), em La Plaine, na França, fez uma mistura
acidental de cloreto de etila e violeta sintética, que lhe
sugeriu a idéia de utilizar o produto resultante nas ampolas
de Kelene.
O Kelene era um anestésio fornecido aos médicos em
ampolas fechadas a fogo, às quais se adaptava uma tampinha
móvel, dispositivo patenteado pela SCUR, em 1890. A idéia
de Chatenoud foi transmitida por Monnet a Maisonnier, encarregado
das experiências na perfumaria Bourjois.
No início, não se acreditava muito no êxito
da descoberta acidental, mas, por via das dúvidas, a SCUR
depositou a patente de um produto com a marca "Rodo" -
a palavra odor ao contrário. O ceticismo tinha razão
de ser: apresentado ao mundo na Exposição Universal
de Genebra, em 1897, o lança-perfume fracassou.
Foi aí que o Brasil entrou na história. Um brasileiro
que passou pela exposição percebeu logo que no seu
País aquela novidade faria o maior sucesso no Carnaval -
e não deu outra. Em apenas um ano - 1909 -, 630 mil unidades
de lança-perfume eram exportadas para o Brasil.
A festa que fizeram foi tamanha que o governo começou a ficar
preocupado - não exatamente pelas mesmas razões de
Jânio Quadros, mas porque via suas reservas em francos baixarem
rapidamente. No começo de 1914, já não se podia
exportar lança-perfumes para o Brasil, embora a produção
e procura continuassem a crescer. Os direitos aduaneiros foram aumentados
a ponto de tornar quase proibido o comércio.
Só a 19 de dezembro de 1919, às 14 horas, no Consulado
Geral do Brasil em Paris, seria fundada a Companhia Quimica Rhodia
Brasileira. Rodo, Flirt, Rodo-metálico, Rigoletto e Rodouro
- as diferentes marcas de lança-perfumes produzidas pela
Rhodia - passaram a fazer parte dos inesquecíveis carnavais
dos "anos inocentes", até que um dia apareceu Jânio
Quadros e o proibiu.
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