AIATOLÁ QUER MATAR AUTOR DOS "VERSOS"
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 1989
|
|
Neste texto foi mantida a grafia original
|
O aiatolá Khomeini, líder religioso e dirigente do Irã,
condenou à morte o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, autor
do livro "Os Versos Satânicos". Khomeini disse que
é dever dos muçulmanos do mundo inteiro tentar matar
Rushdie e todas as pessoas envolvidas na publicação
do livro, porque este "ofende Maomé e o Islamismo".
A Folha publica hoje um trecho do livro.
O governo iraniano enforcou ontem em praça pública 70
traficantes de drogas. No mês passado, Khomeini decretou a morte
dos acusados de tráfico e delitos graves.
|
Khomeini
condena à morte autor de "Versos Satânicos' |
De Londres
O líder
espiritual e político do Irã, aiatolá Khomeini,
condenou ontem em Teerã (Irã) o escritor anglo-indiano
Salman Rushdie à morte por ter escrito o livro "Os Versos
Satânicos" (leia trecho abaixo). Ele pediu que os "bravos
muçulmanos" matem o escritor e todos os envolvidos na
publicação do livro. Disse que qualquer muçulmano
que tenha acesso ao escritor mas que perca a oportunidade de assassiná-lo
será punido. Se um muçulmano for morto na tentativa
de matar Rushdie será, segundo Khomeini, considerado um mártir.
"A ameaça do aiatolá Khomeini é a última
etapa de uma campanha, que começou com calúnias, difamações
e deturpações do livro que tomaram a forma de toda
sorte de violências, e, francamente, gostaria de ter escrito
um livro mais crítico do islamismo", disse Salman Rushdie,
41, o autor anglo-indiano, em tom desafiador, ontem, em Londres.
Reagindo à sentença de morte decretada pelo líder
religioso iraniano contra ele e todas as pessoas envolvidas na publicação
de seu best-seller "The Satanic Verses", Rushdie disse
que "líderes de uma religião que pensam que estão
acima de quaisquer sussurros críticos, merecem um pouco mais
de verdadeiras críticas agora".
O aiatolá Khomeini convocou um dia de vigília nacional
para hoje contra relação ao Islamismo".
O livro de Rushdie, vencedor do "Whitbread Literary Ward"
de 1988, um dos principais prêmios literários anuais
na Grã-Bretanha, foi qualificado de "uma blasfêmia
contra a fé muçulmana" em todos os estados islâmicos
do mundo.
"O livro é uma mera ficção", disse
Rushdie, ontem, em Londres, através de nota oficial divulgada
pela sua editora, a Viking-Penguim. Rushdie nasceu em Bombain, na
Índia, descendente de uma família muçulmana,
fez os cursos secundários e superior na Inglaterra, onde
formou-se em história, na Universidade de Cambridge.
Rushdie deveria viajar no próximo fim de semana para os EUA
para uma turnê promocional do livro de três semanas,
mas o quartel-general da Viking Penguin Internacional, em Londres,
está examinando a situação diante das ameaças
de morte ao autor e dirigentes da empresa nos EUA. Apesar das "precauções
especiais" tomadas pela Viking Pengin em cooperação
com a FBI nos EUA, a viagem de Rushdie por oito cidades norte-americanas
poderá ser suspensa. A decisão será anunciada
amanhã. Ontem à tarde Rushdie, sob escolta da Scotland
Yard, foi levado para uma localidade secreta na Inglaterra.
Em outubro passado, mês em que "Os Versos Satânicos"
foi lançado na Inglaterra, o livro foi proibido pelo ministro
da Fazenda na Índia. Na ocasião, Rushdie disse que
a idéia de que "o ministro da Fazenda deva decidir quais
livros devem ou não ser lidos no país é totalmente
inaceitável num país livre". Em seguida à
proibição pelo governo do primeiro ministro Rajiv
Ghandi, o livro de Rushdie foi retirado das prateleiras das 430
lojas da maior rede de livrarias da Grã-Bretanha, a W. H.
Smith, por "medidas de precaução". O ato
aconteceu logo depois que muçulmanos de Bradford, norte da
Inglaterra, queimaram exemplares de 'Os Versos Satânicos"
em praça pública. Rushdie vendeu por cerca de US$
1,5 milhão os direitos de publicação do livro.
|
Livro
já está à venda nos EUA |
De Nova York
Apesar
do lançamento oficial de "The Satanic Verses",
de Salman Rushdie, ser só na próxima quarta-feira,
dia 22, o livro já pode ser encontrado em quase todas as
grandes livrarias de Nova York. As ameaças que a editora
Viking - representante da Penguin (inglesa) nos Estados Unidos -
vem recebendo por carta e por telefone até agora não
forçaram a empresa a tomar nenhuma atitude radical com relação
a suspender a distribuição do livro ou mesmo cancelar
a vinda do autor a Nova York.
"The Satanic Verses" ainda não entrou na lista
dos dez mais vendidos do "New York Times", mas a polêmica
- ainda que pequena quando comparada ao furor que o livro está
causando nos países onde predomina a religião muçulmana
- em torno da obra e mais os elogios que a crítica vem fazendo
ao trabalho de Rushdie podem contribuir para que logo o livro apareça
como um best-seller. Mais do que o tema controverso da alteração
de alguns versos sagrados pelo diabo encarnado em uma escriba de
Mahound. Salman (leia o trecho nesta página), o que foi ressaltado
pela crítica norte-americana foi a habilidade de Rushdie
como novelista. "The Satanic Verses" parece ser um daqueles
romances que contam várias histórias dentro de uma
só - sonhos dentro de senhos, fábulas dentro de fábulas
- e levam o leitor muitas vezes a esquecer onde a história
original começou. Gibreel Farishta e Saladins Chamcha - os
personagens principais - viajam entre passado e presente, muitas
vezes confundindo a narrativa, mas sempre incentivando o leitor
a prosseguir com a história.
Antes de chegar no trecho mais "ousado", que descreve
o sonho de Gibreel, o autor oferece várias aventuras dos
dois sobreviventes de um desastre aéreo na Mancha.
Toda a discussão sobre a hipótese de o livro ser o
não uma blasfêmia, porém, está no capítulo
6, que conta o sonho. Em um momento da ilusão de Gibreel,
o personagem Mahound - um nome próprio a Mohammed - aparece
como um grande apreciador das mulheres - "(...) Depois da morte
de sua mulher, Mahound não era um anjo, e você sabe
do que eu estou falando" (pág. 366, capítulo
6) - e logo em seguida, o trecho da alteração dos
versos por Satã é narrado. Neste mesmo capítulo,
"Return To Jahilia", o sonho de Gibreel conta que as doze
mulheres do bordel Curtain adotam os nomes das mulheres de Mahound
e começam a fazer sucesso.
Assim como aconteceu com o filme "A Última Tentação
de Cristo", de Martin Scorsese, as consequências da polêmica
sobre "The Satanic Verses", só estão ajudando
a torná-lo mais popular.
_________________________
Trecho de "Versos Satânicos"
"Eis
o que finalmente acabou com Salman para Maomé: a questão
das mulheres; e a dos versos satânicos. Escute, não
sou nenhum fofoqueiro, confidenciou Salman já bêbado,
mas depois da morte de sua mulher. Maomé não era nenhum
anjo, se entende o que quero dizer. Mas em Yathrib ele achou quem
o enfrentasse. As mulheres de lá: elas fizeram sua barba
ficar grisalha em um ano. O problema com nosso Profeta, meu caro
Baal, é que ele não gostava de mulheres que o enfrentasse,
ele procurava mães e filhas, lembre-se de sua primeira mulher
e depois de Ayesha: muito velha e muito jovem, seus dois amores.
Ele não gostava de brigar com gente de seu tamanho. Mas em
Yathrib as mulheres são diferentes, você não
sabe como é, aqui em Jahilia vocês estão acostumados
a dar ordens às mulheres, mas lá elas não aceitam
isso. Quando um homem se casa, ele vai viver com a família
da mulher. Imagine! Chocante, não? E depois de casada a mulher
continua a ter sua própria tenda. Se ela quer se livrar do
marido, vira a entrada da tenda para a direção contrária,
para que, quando a procure, ele encontre tecido no lugar da porta,
e isso é tudo, ele está expulso, divorciado, sem poder
fazer nada a respeito. Bem, nossas garotas estavam começando
a ter estas idéias, por isso, na mesma hora, bang, aparece
o livro de regras, o anjo começa a despejar regras sobre
o que as mulheres não podem fazer, começa a obrigá-las
a voltar às atitudes dóceis que o Profeta prefere,
dóceis e maternais, caminhando três passos atrás
ou sentadas em casa, mostrando sabedoria e se cuidando. Como as
mulheres de Yathrib riam dos fiéis, mas juro que o homem
é um mágico, ninguém podia resistir a seu charme;
as fiéis faziam o que eles lhes ordenasse. Elas se submetiam:
afinal, ele lhes oferecia o Paraíso.
'Bom', disse Salman quase no fim da garrafa, 'finalmente decidi
testá-lo'.
Uma noite o escriba persa teve um sonho no qual flutuava sobre a
figura de Maomé na caverna do Profeta em Monte Cone. No começo
Salman pensou que fosse apenas uma lembrança nostálgica
dos velhos tempos em Jahilia, mas então percebeu que seu
ponto de visão, no sonho, era o mesmo do arcanjo, e naquele
momento a lembrança do incidente dos versos satânicos
lhe voltou nitidamente, como se a coisa tivesse acontecido na véspera.
'Talvez não tenha sonhado que era Gabriel', Salman recordou.
'Talvez eu fosse Satã'."
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|