AOS 61, MORRE O DRAMATURGO JORGE ANDRADE

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 14 de março de 1984

O autor de peças de teatro e de novelas de televisão Jorge Andrade morreu de edema pulmonar ontem de manhã, aos 61 anos, no Instituto do Coração, onde estava internado desde o dia 6. Depois do velório, realizado no Teatro Municipal, foi enterrado no Cemitério São Paulo.
No teatro, seu maior êxito foi "A Moratória", na televisão ficou conhecido do grande público por "Os Ossos do Barão" e "O Grito". Há quatro meses Andrade recebeu uma ponte safena, que implantou após sofrer um infarto. Segundo seus familiares, vinha melhorando, até que teve de ser internado de novo, no começo deste mês. A atriz Miriam Mehler, presente ao velório, disse que a saúde de Andrade foi prejudicada pelos constantes problemas que ele enfrentou em seu trabalho na televisão.

Morre o dramaturgo de São Paulo

O dramaturgo e autor de telenovelas Jorge Andrade morreu ontem aos 61 anos, vítima de edema pulmonar, no Instituto do Coração, onde estava internado desde o último dia 6. Seu corpo foi velado no Teatro Municipal e sepultado no Cemitério São Paulo às 17h30.
Há quatro meses Jorge Andrade foi submetido a uma cirurgia de implantação de ponte de safena por causa de um infarto. Segundo familiares, vinha se recuperando, mas começou a ter problemas respiratórios no começo do mês, sendo internado novamente no Instituto do Coração, onde faleceu às 08h10. Jorge deixa a viúva Helena Almeida Prado e os filhos Camila, Gonçalo e Blandina e inúmeras obras de grande importância para a literatura brasileira.
Nos últimos anos, Jorge Andrade, segundo depoimentos de amigos que compareceram ao velório, vinha sendo injustiçado pela emissoras onde apresentava suas novelas. Para a atriz Miriam Mehler, Jorge foi maltratado porque as "pessoas não sabem lidar com seres humanos. Acredito até que o infarto que sofreu no ano passado foi provocado pelos problemas que teve com a novela 'Sabor de Mel', na Bandeirantes. Agora, não adiantam mais glórias, pois ele já se foi".
Para o secretário municipal de Cultura, Gianfrancesco Guarnieri, "Jorge teve muitos dissabores na televisão, tanto que seu maior sonho era voltar a Barretos, sua cidade natal, e viver exclusivamente para o teatro". Foi ele quem sugeriu à família que o corpo do dramaturgo fosse velado no Teatro Municipal. Guarnieri disse dever muito de sua vida profissional ao autor de "Vereda da Salvação", pois as obras de Andrade, como "A Moratória" por exemplo, serviram de impulso para o autor de "Eles não Usam Black-Tie".
"Os Adolescentes", "Ninho da Serpente" e "Os Ossos do Barão", foram os maiores sucessos de Jorge Andrade na televisão, além de "O Grito", que teve Glória Menezes no papel principal. O ator Kito Junqueira trabalhou nas duas primeiras e lembra que Jorge Andrade sempre foi uma "pessoa aberta à discussão, que exigia sempre o melhor em seu trabalho, mas foi muito magoado pelos medíocres da televisão". Kito acha que com a morte de Jorge o teatro ficará ainda mais carente, "pois não existe nada de novo à vista".
Conhecido também como o eterno solidário às vítimas da repressão imposta pela ditadura, Jorge Andrade foi, na opinião do sociólogo Florestan Fernandes, o único dramaturgo que conseguiu captar a realidade brasileira em todos os níveis. Seu primeiro contato com ele na ocasião de uma reportagem que Jorge fazia para a revista "Realidade". Disse Florestan: "Como sociólogo é fácil desvendar o valor do seu trabalho, que retratava o drama do cotidiano. Ninguém melhor que Jorge Andrade para mostrar o paulista, a burguesia".
O diretor do Departamento de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura, Fernando Peixoto, não teve muito contato com Jorge Andrade. Em 1963, na época do Oficina, Peixoto estava procurando textos de autores brasileiros para substituir "Os Pequenos Burgueses" e pensou em Andrade. Só que jamais houve o casamento Jorge-Oficina. Para Peixoto, as obras de Jorge Andrade têm um aspecto singular, pois não são isoladas. Elas se interrelacionam, formando um ciclo.
O primeiro encontro de Lauro César Muniz com o autor de "Milagre na Cela" foi por volta de 56, 57 quando Muniz ainda era iniciante. Lembra que Jorge apontou os erros dum ensaio que o jovem Muniz havia feito. Além disso, Lauro César e Consuelo de Castro foram, junto com Jorge, co-autores da peça "A Corrente", estrelada por Rosamaria Murtinho e Mauro Mendonça há dois anos.
Renato Consorte e Antônio Petrim, também presentes ao velório, tinham encontros esporádicos com Jorge Andrade. Eles lembraram a importância de sua obra para a literatura brasileira. Consorte quase montou a peça "Rastro Atrás" e Petrim trabalhou na novela "Os Ossos do Barão". Para Petrim, "se com Jorge o teatro já estava capengando, sem ele..."

Mistura de nostalgia e revolta

A morte de Jorge Andrade - de quem Anatol Rosenfeld dizia que "revela ambição literária superior a maioria dos dramaturgos brasileiros contemporâneos" - deixou consternadas as mais diversas personalidades da literatura e do teatro brasileiro. Em todas as declarações, a certeza de que o Brasil perdeu um de seus mais importantes teatrólogos.
"É triste pensar que mais uma vez o Brasil perde, ainda novo, um autor da maior importância, com uma imensa obra já realizada e muito a realizar", disse Fernanda Montenegro, que nas décadas de 50 e 60 teve com Andrade uma convivência intensa, nascida com sua participação em "Moratória" e "Veredas da Salvação". "Sua dramaturgia", continua Fernanda, "teve para as décadas de 50 um papel similar ao de 'Vestido de Noiva' na década de 40. Ela antecedeu em tema e concepção, o papel que depois seria exercido pelo Teatro de Arena. Dizer-se, como muitos fizeram, que ele era um autor conservador, voltado para a aristocracia, o amargurou, porque não é verdade, é mera leviandade, que só se explica por disputas no plano ideológico. Afinal, ele era um autor essencialmente progressista." Igual opinião era defendida por Anatol Rosenfeld, no livro citado: "Longe de ser passadista, esta dramaturgia, ao celebrar, examinar e criticar os valores do passado, é plenamente atual... é engajamento para com o futuro."
O professor Antonio Candido, estudioso da Literatura brasileira, amigo e admirador de Jorge Andrade, comovido pela notícia de seu falecimento, deu à "Folha" o seguinte depoimento: "Para Jorge Andrade o teatro era uma procura da verdade. No seu caso, procura do que significava o mundo onde nasceu, de fazendeiros em crise econômica e social, sofrendo o choque do progresso urbano, sem entenderem bem o que estava acontecendo. Daí ele partiu para descrever as raízes desse mundo e procurar compreender como os seus valores tinham-se formado. Neste percurso descobriu o ângulo do oprimido, daquele cujo trabalho forma a base das prosperidades alheias. E chegou assim a uma visão dramática da iniquidade social. O seu teatro é uma curiosa mistura de nostalgia e revolta, de senso piedoso do passado e denúncia do presente, de compreensão e condenação. Um teatro de alta qualidade, que exprime com nobreza as suas perplexidades e o seu inconformismo. Pessoalmente, sinto muito a morte dele, porque éramos amigos praticamente desde que ele começou a escrever, e acompanhei de perto a construção de sua grande obra".

Pela mão de Cacilda

Amigos e admiradores, esse o resultado da vida intensa de um criador, levado ao teatro pelo ardente desejo de ser ator, conduzido ao "outro lado do palco" pelas mãos de Cacilda Beker, que via nele o gérmem de um grande autor, como narra sua amiga e companheira de trabalho, a colunista Helena Silveira, para quem "ele foi um dos poucos dramaturgos de peso que deu importância à televisão, pondo nos scripts de novela a mesma garra das peças de teatro". "Ele tinha profundo orgulho do que fazia e ao mesmo tempo uma grande humildade, que o levava a pedir a opinião dos críticos como eu. Ele sempre dizia: 'Eu sou um aprendiz da linguagem da televisão'."
Professor da USP, historiador do teatro brasileiro, e cunhado de Jorge Andrade - que era casado com sua irmã Helena - Décio de Almeida Prado conta que quando Jorge entrou na Escola de Arte Dramática da USP, aos 28 anos, em 1950, ainda não estava certo quanto a que rumo daria a sua carreira, mas aceitou os conselhos de Cacilda Beker, que conhecera no TBC: "Foi assim que deu tudo certo, tanto que em suas primeiras obras fazia dedicatórias à atriz. Nos últimos anos" completa Décio, "seu sonho era voltar à dedicação integral ao teatro, e retornar à cidade natal, Barretos, no Interior do Estado".
Embora a dramaturgia de Andrade, tivesse em "A Moratória" a peça mais significativa, "Os Ossos do Barão" servia de contraponto, ironizando de certa forma a mesma aristocracia enfocada pela tragédia da primeira. Sua montagem mais conhecida tinha nos papéis centrais Lélia Abramo e Otello Zeloni. Lélia, que também trabalhou na montagem de outra peça sua, "A Beleza da Salvação", considera Jorge Andrade "o último dramaturgo de um período que se fecha. Acho que perdemos um grande autor teatral, com uma cultura ampla, criador de peças muito bonitas e bem escritas. É pena que nos últimos anos ele não tenha recebido a consideração que merecia. Suas novelas de TV que tinha um nível muito elevado -, não tiveram um sucesso estrondoso, e como as televisões querem o retorno imediato, ele acabou se atritando com elas. Provavelmente ele tinha uma visão de mundo que não se coadunava com o pessoal das televisões".
Para o autor, diretor de televisão Walter George Durst, "a morte de Jorge revela o lado triste do Brasil, talvez o único do mundo que dá valor ao artista depois de morto. Lembro-me quando comecei a adaptar Gabriela e, por volta de 10° capítulo, um crítico disse que minha adaptação era um atentado à cultura popular. Jorge foi o único a me dar apoio. Jorge era um autor de verdade, não desses que andam por aí fazendo novelas".

Amor à terra marcou sua vida

Aluísio Jorge de Andrade Franco, mais conhecido como Jorge Andrade, nasceu a 21 de maio de 1922 em Barretos, descendente de uma família de fazendeiros de café originária do tronco dos Junqueira, do Sul de Minas. Fez seus estudos até o secundário em sua cidade natal e em Bebedouro e, em 1938, veio para São Paulo para cursar a Faculdade de Direito, que abandonou dois anos depois. Após tentativas também sem sequência de cursar uma escola de cadetes no Nordeste e de trabalhar num banco, ele passou os anos que se seguiram na Fazenda Coqueiros, de sua família, exercendo a função de fiscal de cafezal, o que lhe proporcionou um contato direto com os camponeses, com os quais partilhava o amor pela terra.
A terra para Jorge Andrade sempre teve um valor sagrado e ele diria anos mais tarde que, por amor dela, alguns homens oprimem outros, enquanto que, por esse mesmo amor, outros aceitam ser dominados. Ele abordaria essas duas vertentes em suas peças.
As atividades rurais eram divididas com as leituras, que cultivava desde menino, e com escapadas à Capital, onde não perdia oportunidade de ver o que havia de interessante em teatro. Foi numa dessas ocasiões, em 1951, depois de assistir ao desempenho de Cacilda Becker em "O Anjo de Pedra" de Tennessee Williams, que começou a pensar em se dedicar ao teatro, mas como ator. Após o espetáculo, foi conversar com a atriz no camarim e esta o aconselhou a cursar a Escola de Arte Dramática (EDA), mas lhe disse que achava que sua vocação era mais para dramaturgo do que para ator.
A intuição da atriz se revelaria acertada, pois a carreira de ator de Jorge, durou bem pouco (participou de alguns espetáculos montados pela escola), mas a de autor, que se iniciou já em 1951 (quando escreveu sua primeira peça, "O Telescópio", em um ato) iria transformá-lo num dos nomes mais significativos do moderno teatro brasileiro. Em 1955, com a encenação de "A Moratória", dirigida por Gianni Ratto, ele já mostra a sua potencialidade e recebe uma consagração de público e de crítica. Nela, retrata como profundo conhecedor e com empatia a decadência de uma aristocracia rural paulista, empobrecida pela crise de 1929. O tema da decadência ficou, de certa forma, associado à sua obra. Ela é, no entanto, bem mais ampla e mais rica, constituindo um painel da sociedade e do homem brasileiros desde o século 17 até a atualidade, numa tentativa de entender o presente através do passado, como Jorge Andrade tantas vezes acentuou.
Em 1956, durante uma viagem aos EUA Jorge se entrevistaria com o dramaturgo norte-americano Arthur Miller, que ele reconheceu ser, junto com Eugene O'Nell e Tchekhov, as suas principais influências no início. Nesse mesmo ano, ele se casaria com Helena de Almeida Prado, com quem teve três filhos (Gonçalo, Camila e Blandina).
Após as peças dramáticas da década de 50 ("A Moratória", "Pedreira das Almas", "Vereda da Salvação"), ele iniciaria a década de 60, após uma volta à fazenda em 1961, com duas comédias, "Os Ossos do Barão" e "A Escada", em que completa o retrato das classes dominantes paulistas. Elas constituíram igualmente um sucesso de público e foram depois transformadas em novela de TV.
Como muitos outros intelectuais, Jorge Andrade teve sua produção afetada por problemas com a censura no fim dos anos 60 e na década de 70. "Vereda da Salvação", que foi encenada pela primeira vez em 1965, teve temporada curtíssima, pois os tempos não eram propícios a um texto que mostrava a miséria e os sofrimentos de um grupo de camponeses. "A Senhora na Boca do Lixo", uma sutil mas direta crítica aos abusos de autoridade, só pôde estrear em Portugal (em 1967) e uma adaptação de "Pedreira das Almas" para a TV também foi vetada. O principal problema ocorreu, entretanto, com "Milagre na Cela" de 1977, que versa sobre as relações entre uma freira presa e seu torturador, inspirada num fato verídico da época. Isso não impediu que Jorge Andrade continuasse a ser considerado como um dos autores mais importantes de seu tempo e a ter seus textos premiados por órgãos oficiais, como ocorreu com a peça "Rastro Atrás", premiada pelo Serviço Nacional de Teatro em 1966. Seu teatro nunca foi porém, classificado como político, talvez porque, para ele, o homem fosse mais importante que as ideologias.
Mas a censura certamente contribuiu para que ficasse sem escrever para o teatro durante oito anos, época que coincidiu com o início de seu maior envolvimento com a TV, para a qual escreveu várias novelas nos últimos anos, e que considerava um veículo de expressão tão importante quanto o teatro.
Ele, porém, já dividia, desde a década de 60, sua atuação como autor com outras atividades, como o magistério (foi professor do Ginásio Vocacional em sua cidade natal - Barretos - e em São Paulo e ensinou na USP a partir de 1967) e o jornalismo (em 1979 foi colaborador da "Folha", escrevendo vários artigos para a "Ilustrada"). Esta última atividade, em que brilhou como entrevistador participante, foi depois recuperada literalmente em seu romance autobiográfico "Labirinto". Nele se destaca a quanto a memória, sobretudo a memória afetiva, foi fundamental para a obra de criação de Jorge Andrade. Uma memória que recupera desde as suas lembranças de família (que também constituem o núcleo de "Rasto Atrás"), entre as quais se destaca a presença marcante da avó, Mariana - a mulher forte na resistência - até as relações de amizade, que vê sempre como uma riqueza que a ele se acrescenta.
Segundo alguns, Jorge Andrade teria inspirado a personagem de "Fazendeiro do Ar", de Carlos Drummond de Andrade. Mas muito mais do que do ar, ele foi um homem cujas raízes estão localizadas na terra, a grande mãe. A terra brasileira que amou, como amou a sua humanidade e que ele gostaria, usando suas próprias palavras, que fosse "um lugar onde o amor será justiça e o horizonte uma porta sempre aberta".


Poeta do Brasil rural

Jefferson Del Rios
Crítico da "Folha"

Jorge Andrade abriu definitivamente seu espaço na cena teatral brasileira com "A Moratoria", encenada, em 1955, no Teatro Maria Della Costa. Sua obra seria um painel preciso e compassivo da formação, crise e fim da aristocracia cafeeira paulista. Os personagens de "A Moratoria" são os desbravadores do Oeste paulista, os fazendeiros da Paulista e da Mogiana, gente que teve o seu esplendor subitamente ferido pela crise de 1929.
Jorge Andrade via este mundo com olhos críticos ainda que não isento de difusa nostalgia (afinal, ele era filho de fazendeiro). Descreveu as ilusões e desesperos do proprietário quando a fazenda vai a leilão. Em "O Telescopio" mostrou a desagregação moral destas mesmas familias, agora engalfinhadas em disputas de herança, surgindo em cena o filho bêbado e revelador do "fim da raça". Raça de obstinados conquistadores vindos de Minas Gerais quando a mineração do ouro entra em colapso; e que Jorge Andrade recuando no tempo, descreve com grandeza em "Pedreira das Almas".
Desviando momentaneamente a atenção da casa grande da fazenda, o dramaturgo captaria outro aspecto do drama rural brasileiro em "Vereda da Salvação", onde camponeses espoliados escapam do cotidiano miserável pela via do misticismo agressivo. Tema forte da sociologia rural que o artista traz para o palco. E, para encerrar sem tons fúnebres mas com bastante ironia, uma comédia sobre os últimos dias dos chamados velhos troncos paulistas: "Os Ossos do Barão", engraçada, e secretamente dolorida, rendição dos quatrocentões ao dinheiro emergente do novo rico italiano. Ele ficará como um escritor maior do teatro, e uma dia será revisto em cena com admiração (tem peças inéditas em São Paulo). Dentro de um quadro temático variado e com autores do nível de Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri e Plínio Marcos entre outros, Jorge Andrade traçou e cumpriu um belo destino de artista.


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