YAN ABRE A SÉRIE ATACANDO A SEMANA, "UMA GOZAÇÃO"

Iniciando hoje uma série de reportagem e artigos sobre 60° aniversário da Semana de Arte Moderna, a "Ilustrada" publica o depoimento de Yan de Almeida Prado, um dos dissidentes do movimento de 1922. Em entrevista a Mauro Santayana, ele diz que a Semana não passou de "uma gozação de fazendeiros endinheirados", aproveitada por Mário e Oswald de Andrade, que queriam promover-se a qualquer custo.

Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 1982

EDITORIAL

60 anos da "Semana"

Há 60 anos, por iniciativa de um grupo de jovens artistas, acontecia em São Paulo um polêmico evento cultural - a Semana de Arte Moderna - que, em virtude do movimento de renovação que se supõe ter produzido no campo das artes e principalmente da atividade literária brasileira, ficou conhecido como "os sete dias que abalaram a literatura".
Na realidade, foram três dias de conferências, exposições de pintura e escultura, audições musicais e leitura de poemas cuja tônica vanguardista e irreverente contrastava com seriedade do local onde se realizavam, o imponente edifício do Teatro Municipal. A Secretaria de Cultura do Município abre hoje, no mesmo lugar, uma exposição comemorativa que, de acordo com o secretário Mário Chamie, é o primeiro passo de um trabalho de levantamento e avaliação da Semana de Arte Moderna de 1922 e suas consequências na vida cultural do País.
É pouco provável que os filmes, esculturas, fotos e documentos da mostra tenham alguma repercussão fora de um limitado círculo de entendidos. Certamente a exposição receberá ainda a visita de grupos de estudantes que, conduzidos e orientados por seus professores, talvez aprendam a não fazer mais confusão entre Mário de Oswald de Andrade. Afinal de contas, tanto os autores de "Macunaima" e "Serafim Ponte Grande", como ademais Menotti del Picchia, Anita Malfati, Manuel Bandeira e outros nomes ligados à Semana de 22 são presenças obrigatórias nos testes de vestibular.
A confirmar-se esta previsão, a retrospectiva montada pela Prefeitura não será muito diferente - guardadas as devidas proporções - do fato que pretende rememorar e divulgar. A Semana de Arte Moderna de 1922, com efeito, por mais iconoclasta e revolucionária que tenha sido, foi um movimento de elite. Esta constatação não invalida o papel que desempenhou ao romper com o marasmo das formas de expressão artística contra as quais se levantou. Para além dos galhofeiros e exóticos títulos de obras, grupos, revistas e manifestos ligados à Semana - "Paulicéia Desvairada", "Revista Klaxon", "A Escrava que não é Isaura", "Manifesto Pau Brasil" etc. - existiu um esforço para substituir o bem comportado academicismo da produção cultural da época por temas e meios expressivos mais de acordo com uma sociedade que se transformava rapidamente.
As limitações de tal esforço, contudo, foram assinaladas pelo próprio Oswald de Andrade, uma das figuras mais atuantes do movimento: "O modernismo da Semana foi uma contribuição da elite que não carreou para o corpo exangue da literatura os glóbulos vermelhos do nosso povo". Esta afirmação não se aplica apenas à Semana de Arte Moderna, mas caracteriza muito bem o divórcio que sempre existiu neste País entre uma minoria esclarecida e o conjunto da população, e não só em termos culturais, mas políticos, econômico, sociais.
É sem dúvida de suma importância que nossos homens de letras - a exemplo da atitude dos modernistas de 22 - sejam, em suas obras, sensíveis à realidade do País, e procurem expressar a diversidade cultural que o caracteriza. Isso não significa, evidentemente, que a criação artística - em nome de um discutível e estreito comprometimento - deva assumir o caráter de panfleto. Não será com invectivas incendiárias que se conseguirá ampliar o acesso de grande parte da população aos bens culturais de que está excluída, pois esta é uma questão que transcende o âmbito da cultura propriamente dita. Como outras, é resultado e reflexo de um modelo político e econômico excludente que não faz senão perpetuar e alargar o fosso entre uma reduzida elite e a maioria da população.
De qualquer forma, a Semana de Arte Moderna foi um marco significativo na cultura do País e como tal merece ser lembrada na cidade onde ocorreu, há sessenta anos.

Um testemunho irônico sobre 22

Há 60 anos começava a Semana de Arte Moderna, considerada "uma gozação" por Yan de Almeida Prado

A casa - senhorial, com a fachada austera de antigos conventos portugueses - é das últimas recordações dos nobres tempos dos Campos Elísios, embora não seja muito velha. Diante dela estão os fundos do Palácio, mas, ao lado, mansões mais antigas resignam-se ao destino de cortiços. Nos fundos, o jardim se assemelha também aos quintais minhotos, e um homem trafega com botões de rosas nas mãos. Vê-se logo que é um aristocrata, porque não teme ser confundido com um jardineiro. A casa, por dentro, veio da rua Humaitá, onde bem humoradamente chamava-se "Pensão", porque a mesa estava sempre posta para os amigos. Seu dono, de passos espertos, olhos espertos, voz mansa que carrega adjetivos impiedosos, é intransigente testemunha de acusação da Semana de Arte Moderna. João Fernando de Almeida Prado, Yan para os amigos e a lombada de seus livros, é considerado ultraconservador, e não se interessa em amenizar o conceito. Em sua casa, reuniam-se ontem, e se reúnem hoje, pessoas das mais importantes de São Paulo.
"Antigamente o Chatô vinha às terças, para não se encontrar com o dr. Julinho, que vinha às quintas. Mas não faltavam."
Yan começa mansamente sua análise da Semana, com argumentos que condomina com outros críticos do movimento: os Andrade ("Marioswald", a contração que ele inventa, bem no jeito do autor de "Macunaíma") não tiveram a importância que requereram, com sua habilidade, da história literária.
Fala depois de Marinetti, que tinha menos talento do que Appolinaire, e mais dinheiro; trafega pela sociologia da Literatura, para explicar os movimentos renovadores na Europa e sua importação para o Brasil, e resume a primeira parte de sua opinião:
"Eles eram tudo: poetas, ensaístas, críticos, romancistas, entendidos em música, artes plásticas, religião, política. Como prosadores sentiam-se nada menos que Cervantes. Mas isso se explica. São Paulo, naquele tempo, era o café, a burguesia ascendente, o crescimento rápido, e as colônias."
Yan vai descrevendo as colônias. Os portugueses por aqui, os franceses ali; ingleses em seu lado, alemães no outro. E mais numerosa, mais barulhenta, a dos italianos. Pergunto-lhe como se sentiam os Almeida Prado, os Penteado, enfim, os paulistas de quatro séculos, com essa irrupção de estrangeiros, que não se comunicavam senão com seus compatriotas, ainda assustados com a nova terra. Tal afluência deve ter perturbado a vida dos barões do café, que traziam para seus palacetes na cidade o bucolismo das fazendas., o que faziam, diante daquela invasão?
"Quando podíamos, íamos para Paris".
Iam para Paris, e de Paris importavam vinhos e idéias. Paris era também, como sempre, a meca dos que queriam glória. Ali, virando o século, reuniram-se poloneses, catalães, italianos, andaluzes. Os "ísmos" se sucediam. Marinetti era mestre em propaganda de si mesmo, com agressiva presunção. Estavam todos embasbacados pela máquina, pelo "futuro". "Di Cavalcanti, que foi um dos pais da idéia, disse, há pouco tempo, que a Semana não teve influência nenhuma no desenvolvimento do Modernismo no Brasil. Foi apenas um episódio".
Yan se recorda dos primeiros tempos de Di Cavalcanti em São Paulo. Naquela época as ilustrações eram importantes, porque a fotografia jornalística apenas começava. Di Cavalcanti ficou conhecendo Paulo Prado, que comprou seus "Fantoches da Meia-Noite", obra de muito boa qualidade, e pagou regiamente. Antes, o depois pintor fizera uma exposição e não vendera coisa alguma. Mais tarde, Di Cavalcanti voltou para o Rio, de onde, ajudado pelo "Correio da Manhã", foi para Paris.

"É o choro estridente e inconsolável das viúvas"

Em Paris, lembra Yan uma carta recebida de Sérgio Milliet, contando-lhe o fato. Di, para espichar os cobres magros que lhe mandava o "Correio da Manhã", trabalhava como desenhista de modas.
A iconoclastia de Yan de Almeida Prado não perdoa sequer seu amigo Sérgio Milliet, com quem manteve nutrida correspondência.
"O Sérgio era poeta, mas queria ser poeta francês. Educado na Suíça, não estava aguentando viver aqui. O ambiente era sufocante em seu subdesenvolvimento horroroso, e São Paulo, então, era pior do que o Rio de Janeiro. Durante muito tempo o Sérgio só nos escrevia cartas em francês."
Mas o mais divertido era a disputa permanente entre Oswald e Mário. Oswald, rico, era menos estudioso que Mário, embora ambos - é a opinião do entrevistado - fossem igualmente pedantes. Uma vez, a uma jornalista do Rio, Oswald fez de Mário um retrato cruel. Disse que Mário era "uma figura ridícula, sem importância, um sujeito gozado, careca, de óculos, carregando tocha e cantando em procissão".
Melhor não pensava o autor de "A Escrava que não era Isaura" de seu parceiro e competidor. Em carta, recentemente divulgada, assim se referia a Oswald: "Mas, francamente, acho uma pena que uma vida harmoniosa e forte como a que me vou construindo com energia se veja assim prejudicada por alguém que, francamente, como vida, como humanidade, nada mais tem sido do que um fracasso".
Mário de Andrade era mais classe média, embora a mãe fosse de "boa família". O pai era impressor de livros didáticos, mas havia professores entre os tios.
"O Mário escondia a sete chaves o livro "L'Enchanteur Pourrisant' de Appolinaire. Não queria que soubessem de onde havia arrancado o seu "Macunaíma". Por isso eu creio ter sido o único, além dele, a possuir o livro, e Mário ficava apavorado com a idéia de que eu mostrasse aos outros meu exemplar".
De muitas coisas mais fala Yan, sempre com a mesma ironia, durante a conversa. Relembra a influência de Blaise Cendras sobre o movimento, quando esteve em São Paulo a convite de Paulo Prado, e do conselho do escritor aos rapazes para que se preocupassem menos com A Europa, e se voltassem para a força inspiradora do Brasil. Ironiza os rumos políticos dos protagonistas da "Semana" e seus seguidores próximos, e garante que Mário de Andrade teve seu "pendant" pelo nazismo quando o negócio ia bem, passando apertado para justificar sua posição depois de Stalingrado. Acha "engraçado" o esquerdismo posterior de Oswald de Andrade, nutrido pelo apoio do velho PRP e intimo de Washington Luís e Júlio Prestes.
E explica a aparente importância da Semana, sempre relembrada e comemorada, quando o "modernismo" já está morto e sepultado: "É o choro estridente e inconsolável das viúvas".
Dito isto, Yan de Almeida Prado volta a cuidar de suas rosas, seguido de perto por uma gata inquieta, por estar no cio.

Como foi prepara a semana

Yan assegura que a decisão firme de se realizar a Semana foi tomada na casa de Paulo Prado, fazendeiro e comissário de café, havia Paulo Prado (que era exitoso homem de negócios, mas "o que entre dois estava melhor informado do que se passava no mundo") reunido - como era costume - várias pessoas. Entre os muitos escritores, desenhistas, comerciantes, estavam René Thiollier, Guilherrme de Almeida e Di Cavalcanti, recém-chegado do Rio para tentar a sorte em São Paulo. Quando Di expôs a idéia, dona Marinette, esposa do anfitrião, sugeriu que o ato que se pretendia tivesse algo dos espetaculares desfiles de moda feminina em Deauville. Mas São Paulo, naquele tempo, era muito pobre de nomes. Di sugeriu que se chamasse, do Rio, Graça Aranha. Graça Aranha já era velho conhecido dos Prado. Paulo havia, mesmo, ajudado o autor de "Canaã" a adquirir um jornal em Paris. Diplomata aposentado, o romancista era uma das estrelas mundanas de seu tempo.
"Como vê - e a frase de Yan corta fundo - a Semana não passou de uma gozação de fazendeiros endinheirados".
Paulo Prado e René Thiollier movimentaram-se, conseguiram o Teatro Municipal, e a Semana durou três noites alternadas. Na segunda estourou a famosíssima vaia, logo depois que falara Menoti Del Picchia, que por ser já um nome forte, fora respeitado.
A Semana não passaria disso: uma exposição de quadros estranhos para a sensibilidade "caipira" de São Paulo, a música diferente de Villa-Lobos e os poemas sem rima e sem métrica dos jovens Mário e Oswald de Andrade, entre outros, se não houvesse a badalação posterior, promovida, em seu próprio favor, pelos dois nomes mais conhecidos do movimento.

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