Mais América

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 19 de agosto de 1943

FLORESTAN FERNANDES

Especial para a "Folha da Manhã"

O momento atual tem profundo significado para nós. É o momento em que as Américas se definem pela América e em que os homens americanos devassam as terras americanas em todas as direções. Parece-nos mesmo, que o americanismo passou do plano exclusivamente político e económico, para integrar as preocupações dos homens médios. Assim, não é mais fórmula aproximadora de nações, um pã-americanismo, mas uma realidade unificadora de povos, isto é, de individuos e ideais.

Nós, no Brasil, já tivemos no passado homens que lutaram pela aproximação americana, e muito trabalharam para isso. Rio Branco e Joaquim Nabuco foram americanistas por excelência, se entendermos o americanismo como forma de incrementar as relações entre as nações americanas, à moda de Monroe. Depois desses dois estadistas, houve altos e baixos relativamente à aproximação continental, entre nós, predominando, como sempre, o sentido de maior compreensão americana. O nosso momento, entretanto, é original. As Américas tornam-se América através das gerações novas. Pela primeira vez, de norte a sul, os moços participam intensamente da vida e dos problemas americanos: é a função que estão realizando as universidades, as grandes instituições que concedem bolsas de estudos, as missões de divulgação cultural e os próprios governos. E só desta maneira podem os americanos se por em contacto com os problemas reais da América, problemas que são nacionais sob certos aspectos, mas que sob outros são americanos e mesmo universais. Tambem se apresenta como o único modo para uma compreensão ampla, do americanismo, pois o conhecimento da nova formação e dos problemas atuais, está, sem dúvida fornecendo uma outra América à geração nova, a América que é hoje, e não as Américas da época colonizadora, entrepostos comerciais das grandes potências européias.

O americanismo não é um problema. É antes, uma realidade ou, diríamos melhor, uma contingência. Veiu-nos com o descobrimento, com a fixação do homem à terra, com as necessidades impostas pelo meio aos novos elementos étnicos, criando um ambiente de rudeza e de fraqueza que observamos em todos os povos da América, sejam do norte sejam do sul, latinos ou não. Embora as soluções não tenham sido idênticas, as situações foram constantemente as mesmas. O negro, por exemplo, na América do Norte foi segregado, enquanto no Sul, entre nós, fundiu-se em grandes proporções aos demais elementos étnicos. Mas o tráfico e a escravização inicial do negro foi uma contingência, lá como aquí.

E quais foram os primeiros civilizados da América? Os homens da ombridade e da sombranceria, os homens de punho de ferro e coração-fornalha. Formamo-nos, todos, aos poucos e de empréstimo. Transplantamos homens e cultura e vivemos o mesmo drama da liberdade selvagem, do homem liberal por contingência e formação e de um democratismo sui-generis: o obedece-me que serás benquisto e digno. Democratismo, aliás, que resultou do encontro de duas atitudes antagônicas: o autoritarismo individual do europeu dominante e os padrões propriamente democráticos de conduta, impostos pela realidade, pois aquí até a tolerância foi, historicamente, uma contingência. Nisso a América superou o homem...

Atualmente, mais que no passado, somos os homens que lutam por duas soluções: a étnica e a económica. Começamos um processo e não percebemos seu fim e dele conhecemos apenas certas fases já realizadas. Como se definirá cada tipo étnico americano e quando? Como serão resolvidas as questões sociais implicadas pela nossa formação? Qual o sentido que tomarão as relações entre brancos e não brancos em cada país americano e como influirão na tendência de maior aproximação americana? E qual vai ser a afirmação económica de cada pais americano? Seguirão a linha imposta pelos recursos naturais ou procurarão futuramente criar um organismo económico autárquico, mesmo que artificial? Seguirão a divisão natural dos mercados, compreendendo a complementaridade dos mesmos, ou criarão economias nacionais em conflito, como já o fizeram os europeus? Como influirá a situação económica de cada pais nas relações das Américas como América no futuro? Quais os aspectos que tomarão as relações sociais nessas sociedades? Porque estamos em processo tudo são perguntas, e valem tanto aqui como acolá. Somos, quasi, a mesma gente. Pelo menos vivemos as mesmas situações e temos que resolver problemas fundamentalmente semelhantes.

Somos os mesmos homens sem "finesse", os homens de mãos calejadas que constroem o mundo brilhante e enfatuado de amanhã. O mundo americano realizado e das idéias voltadas sobre si mesmas. Porisso somos os homens da tragédia e sentimos palpitar a selva que estua violentamente neste mundo híbrido e em realização. Nós o sentimos porque o estamos criando, e o sentimos não como criadores, mas ingenuamente, sem malicia e profundeza porque ele nos parece grande demais para ser criado por alguem -mesmo milhões de pessoas em dezenas de gerações.

Porisso falamos em mais América. Este mais América significa um maior conhecimento recíproco de formas e não de conteudos, como poderia ressaltar do que já dissemos no artigo. Contudo não deixa de ser necessário e fecundo, emprestando um carater muito simpático a esse bandeirismo inter-continental e verdadeiramente americanista das novas gerações.

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