VELHICE, UMA DOENÇA QUE ATINGE TAMBÉM A CIDADE


Publicado na Folha de S.Paulo, Domingo, 21 de maio de 1972

A velhice chega à cidade com a mesma inexorabilidade com que atinge o homem. Primeiro vem o comércio pequeno, redundante em ofertas. Em seguida surgem os bares congestionados por charutarias. Atrás, a queda imobiliária, que atrai firmas menos solidas, à procura de clientes para seus serviços. As escolas de danças populares, as academias de judô e alterofilismo e os pequenos laboratorios de fotografia seguem rapidamente a corrente.
A avenida São João é hoje um retrato esmaecido dos anos em que os jornais mostravam sua paisagem para provar "a pujança da Paulicéia". A cidade vai rapidamente ultrapassando a velha rua e caminhando em direção aos bairros.
Quando os grandes cinemas das decadas de 40 e 50 se instalaram no centro, quase todos escolheram, como porto a avenida São João - como o Art Palacio, o Metro, o antigo cine Ritz, o Olido ou o extinto Rivoli. Os que não ficaram na propria avenida estavam perto, na Conselheiro Crispiniano (Marrocos), avenida Ipiranga (Marabá e Ipiranga), no largo do Paissandu (o antigo cine Bandeirantes - hoje cine Ouro - ou o proprio Paissandu).
Hoje - menos de 30 anos após a chegada das primeiras grandes salas centrais - é possível entrar num cinema, em plena avenida São João, pagando apenas Cr$ 2,50 de ingresso - quase a metade de uma meia entrada, num cinema moderno da Zona Sul. E com direito a assistir a dois ou três filmes de uma só vez.
No cine Saci, a poucos metros do Anhangabau, estão em exibição "Django mata para viver" e "Um homem, um cavalo, uma pistola". As sessões começam às 9 horas de manhã, quando no edificio ao lado alguns jovens entram para suas aulas - é o Conservatório Dramatico e Musical, onde Mario de Andrade foi professor, no periodo mais vivo da São João.
A decadencia da avenida poderia, mesmo, ser prevista no fim da decada de 50 quando começaram a surgir grandes conjuntos de escritórios na avenida Paulista. Segundo Hans Blumenfeld, conferencista da Universidade de Toronto, Canadá, em toda metrópole o crescimento obedece a forças centrifugas: as zonas de importância comercial, e empresarial tendem caminhar para os bairros, enquanto o centro tradicional vai sofrendo um esvaziamento progressivo, até se deteriorar.
No Exterior, a população mais humilde fixa-se nas áreas mais centrais, enquanto as classes mais abastadas partem para a periferia. Em São Paulo, onde as classes média e alta se fixaram sempre nas zonas Sul e Oeste, a população de menor poder aquisitivo encontrou boas áreas residenciais nas Zonas Leste e Norte - o que talvez explicou o não-aparecimento de verdadeiros "guetos" dentro do centro.
A deterioração da avenida São João é, também, a deterioração de quase todo o centro tradicional; mesmo os grandes escritorios, que costumam permanecer na área mais central, vão transformando a avenida Paulista no novo foco de concentração paulistana.
Para chegar à São João, contudo, a decadencia demorou 30 anos. Começou invadindo a rua Direita, por onde passeavam as mulheres elegantes da cidade na decada de 40. Quando o Mappin se transferiu para o outro lado do viaduto a praça Ramos de Azevedo, apesar das reclamações das paulistanas de então, todo o centro nobre estava também começando a se transferir.
A Barão de Itapetininga tornou-se o centro nobre da cidade 20 anos após a rua Direita - e atingiu o apogeu na decada de 50, quando o quadrilátero Sete de Abril/Ipiranga/24 de Maio/Praça Ramos foi tomado pelos consultorios medicos e lojas elegantes.
Mas a decadência - que se espalhou por toda a região proxima à praça da Sé - iria invadir também aquele retangulo privilegiado. Escolheu como caminho a São João. Primeiro até o Anhangabau, depois até o largo do Paissandu, e nos ultimos anos até a Duque de Caxias.
No começo do século, a estreita rua São João foi transformada numa grande avenida - a maior de São Paulo - apesar das críticas de muitos paulistanos, que não viam sentido em demolir tantas casas para abrir uma avenida tão exageradamente larga, mesmo considerando que ela era toda arborizada.
Hoje, ao longo de suas calçadas desfilam vendedores de espetinhos de churrasco, são expostas fotos de vedetes de rebolado - também em crise na cidade -, prateleiras de discos, pequenas livrarias, restaurantes grandes e pequenos, alguns ainda vivos graças à nostalgia paulistana.
Caminho da decadência do centro tradicional a São João cai levando junto todo o centro tradicional, para o qual foi criada: muitos medicos já sairam das ruas Marconi, Xavier de Toledo e Sete de Abril para o Paraiso. As novas empresas de serviço instalam-se nos "jardins". Lojas elegantes transferem-se para a região da Paulista e da avenida Faria Lima. E muitas empresas e profissionais que ainda permanecem no centro já estudam sua retirada.

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