DE NOVO, O FLAGELO DAS ENCHENTES
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 1977
|
|
|
Um menor de 16 anos morreu afogado, na rua Cícero Marques,
Parque Edu Chaves. Casas e muros desabaram nesse bairro, deixando
ao desabrigo mais de 150 famílias. O Corpo de Bombeiros recebeu
mais de 100 pedidos de auxílio principalmente da Freguesia
do Ó, Casa Verde, Cangaíba e Limão. A Zona Leste,
como sempre, foi a mais castigada.
Essas foram as principais consequências do aguaceiro que desabou
ontem à tarde sobre a cidade. Para os moradores das áreas
atingidas esse foi o começo do dramático ciclo anual
das enchentes - um flagelo que se repete sem nenhuma providência
efetiva para eliminá-lo.
|
40
pisoteados |
Cerca de 40 pessoas ficaram feridas - algumas gravemente - ao serem
pisoteadas, ontem à tarde, quando se abriram os portões
do Estádio Municipal do Pacaembu. O temporal que caiu às
14h30 foi uma das causas do tumulto, pois a correria começou
com a tentativa dos torcedores de fugirem à chuva. Segundo
algumas testemunhas, cavalarianos da PM teriam lançado seus
animais contra o público.
Para o tesoureiro-chefe da Federação Paulista de Futebol,
o policiamento chegou atrasado ao Pacaembu, o que impediu a abertura
dos portões no horário previsto (13 horas) e desencadeou
o tumulto. O secretário da Segurança, coronel Antônio
Erasmo Dias, diz, no entanto, que "a polícia estava atenta
na hora aprazada".
|
Um
morto e muitos desabrigados após a chuva |
Um menor de 16 anos arrastado pelas águas e encontrado morto
duas horas depois, alagamentos de ruas e avenidas nas quatro zonas
da cidade, seis casas destruídas e pelo menos 150 famílias
desabrigadas formaram o saldo de cerca de duas horas de chuva forte
ontem na Capital, onde o Serviço de Meteorologia da Agricultura
registrou às 15 horas o maior índice pluviométrico
do ano: 34 milímetros em 20 minutos.
O aguaceiro começou por volta de 14h15 e logo depois o Copom
- Centro de Comunicações da Polícia Militar -
começava a receber os primeiros telefonemas de pessoas pedindo
socorro. Às 15 os chamados recebidos pelo Corpo de Bombeiros
eram registrados em média, 10 por minuto, e a partir daí,
foram suspensos os atendimentos menos graves, para dar lugar às
ocorrências com vítimas.
Depois dessa providência foram mobilizadas todas as viaturas
e o pessoal disponível da Polícia Militar, com a colaboração
das equipes de socorro Administrações Regionais da Prefeitura.
A situação foi controlada depois das 18 h quando os
casos mais urgentes haviam sido atendidos e centenas de crianças
eram retiradas de residências ilhadas.
|
Casos
graves |
A ocorrência mais grave foi no Parque Edu Chaves, onde um jovem
de 16 anos caiu na enxurrada em frente ao número 108 da rua
Cícero Marques, e desapareceu. Seu corpo foi encontrado no
rio Cabuçu que atravessa a favela Edu Chaves, um local baixo
e considerado muito perigoso em épocas de chuvas por estar
sujeito a enchentes.
Ainda na zona Norte, 16 barracos da favela Primavera - rua Maria Eliza
Siqueira, esquina com rua Barbosa, Casa Verde Alta - foram destruídos
pelo temporal deixando dezenas de famílias ao relento, a exemplo
do que aconteceu nas vilas Amália e Piqueri e Jardim Brasil.
Na Zona Leste, populares conseguiram salvar um garoto de 13 anos que
era carregado pelas águas, na rua Puria, bairro do Cangaíba
mas não conseguiram resgatar algumas famílias ilhadas
no mesmo local, onde os bombeiros atenderam dois casos de desmoronamento
de moradias.
No número 7.500 da rua Vergueiro, no Ipiranga, os bombeiros
tiveram muito trabalho, apesar da ajuda de moradores, para tirar um
cavalo que se afogara numa área alagada. O Copom informou que
atendeu, das 15 às 16h30, aproximadamente 50 chamados de vítimas,
com ferimentos generalizados.
|
Casas
destruídas |
O rio Pinheiros chegou a causar um início de pânico na
região da ponte Morumbi, principalmente na avenida Jurubatuba,
onde as águas subiram a mais de um metro de altura, alagando
residências. Em cinco minutos o Corpo de Bombeiros recebeu 17
chamados de moradores da área, solicitando providências
para que a Light abrisse as comportas da Usina Traição,
pois o nível do rio estava se elevando rapidamente.
As residências que desabaram com o temporal, obrigando a saída
de seus ocupantes que corriam riscos foram as seguintes: rua José
Adorno, 39 (Cangaíba); rua Helena Sacramento, 389 (Lauzanne
Paulista); r. Major Scurapico, 67 (Ipiranga); r. Epaminondas Mello
do Amaral, 99 (Casa Verde; rua Roberto Claudio, 50A (Vila Ré);
r. Domingos Silva, 138 (Penha); e rua Renata, 1 (bairro do Limão)
onde quatro pessoas ficaram gravemente feridas.
A relação dos desabrigados atingiu a mais de 150 famílias
e foi elaborada uma lista pela Polícia Militar para ser encaminhada
ao serviço de assistência social do Palácio do
Governo.
Segundo informações da Polícia Militar, entidades
de serviços e as Administrações Regionais se
encarregaram de atender aos desabrigados.
|
Trânsito
e Bueiros |
O Departamento de Engenharia de Campo do DSV foi acionado, ontem à
tarde, para ajudar no controle do trânsito que estava congestionado
nas avenida marginais e outras vias, principalmente na Zona Leste,
onde a Radial Leste ficou intransitável por mais de duas horas.
Nessa avenida altura do viaduto Bresser, dezenas de carros que tentaram
atravessar o lago que se formou ali, acabaram ficando inundados e
abandonados por seus ocupantes até que veículos da Prefeitura
e Corpo de Bombeiros foram retirá-los.
Essa movimentação provocou um grande movimento de curiosos
que assistiam à movimentação das vítimas
das enchentes, apontando a má conservação dos
bueiros como causa das enchentes.
Em algumas áreas, a pronta intervenção do Corpo
de Bombeiros, desentupindo os bueiros, evitou ocorrências mais
graves. Entretanto, essa providência só foi adotada no
início da chuva, quando os chamados eram feitos em menor número.
Assim que a situação ficou complicada, os bombeiros
passaram a atender somente a casos com vítimas, não
dispensando atenção às crianças.
|
Outras
ocorrências |
Os moradores da travessa Barão de Passagem enfrentaram problemas
quando o riacho Agua Funda transbordou. O nível da água
chegou a um metro e o Corpo de Bombeiros não apareceu, apesar
dos chamados.
Miguel Gil Berrocal, residente no n° 1 da travessa, disse "a
água chegou à cintura, mas em alguns locais cobriu os
carros". Mostrando as marcas deixadas pela lama, explicava que
havia água até na cozinha, que fica nos fundos. A pista
da av. Prof. Abraão de Moraes também foi ocupada e,
somente por volta das 17h, o nível baixou. Na av. Ricardo Jafet,
veículos procedentes da Baixada Santista, entravam num funil
devido à ocupação parcial do leito viário
por tijolos levados pela enxurrada. Os detritos surgiram após
as águas derrubaram cerca de 15 metros de um muro do depósito
Eternit, por volta das 16h.
Com parte do muro que cerca o riacho Água Funda levado pelas
águas, pouco antes de desembocar no Tamanduateí a av.
Tereza Cristina ficou inundada a quase um metro de altura. Eliana
Cunha, moradora no n° 299, comentou que a forte chuva não
surpreendeu ninguém: "Já estamos acostumados a
enchentes de até um metro e meio".
O ônibus da empresa de turismo Ensatur de Campinas, chapas SX-1759,
regressava da Baixada Santista com 37 passageiros, quando foi surpreendido
pelo nível elevado das águas na av. do Estado, proximidades
da rua Prof. Soares Brandão. Das 15h às 17h aproximadamente,
os passageiros e o motorista permaneceram presos no veículo,
até que cinco policiais do 11° Distrito realizassem o resgate,
através de uma janela. Não houve vítimas e todos
foram transportados por um caminhão particular, de placas IJ
5170.
Segundo o motorista, Luís Carlos, foi tentada a travessia do
local alagado "porque havia pouca água e ninguém
esperava que o nível subisse rapidamente". Mas a enchente
já havia atingido um metro de altura provocando a parada do
veículo.
A viatura 508 do Tático Móvel atendeu a ocorrência
e os patrulheiros retiraram uma janela do ônibus para resgatar
os passageiros .
"Não fiquei assustado - comentou o motorista Luís
Carlos -, porque ninguém tentou descer enquanto ficamos presos.
Com a chegada da Polícia ficou mais fácil e foi saindo
um de cada vez". A remoção durou cerca de 30 minutos
e no final a grande preocupação de todos era colocar
o ônibus em condições, para retornarem as suas
casas.
|
37
torcedores pisoteados nos portões do Pacaembu |
Precipitação dos torcedores? Da polícia? Agora,
certamente, vai ser complicado achar os culpados pelo tumulto ocorrido
ontem à tarde, às portas do estádio do Pacaembu,
antes da partida Coríntians e Internacional, e do qual resultaram
dezenas de feridos.
O jogo estava marcado para as 17 horas. Muito antes do meio dia, entretanto,
uma multidão já se aglomerava diante dos portões
principais do estádio municipal Paulo Machado de Carvalho.
Os portões só foram abertos com a chegada da polícia
logo depois das 14 horas, quando um número muito maior de torcedores
ali se concentrava. Na hora de entrar foi uma confusão: houve
empurra-empurra, todos queriam passar ao mesmo tempo. A pressa talvez
tenha sido causada pela chuva que, naquele momento, começou
a cair pesadamente sobre as cabeças dos torcedores.
|
Cavalos
e pânico |
Mas vários depoimentos atestam que a confusão ficou
maior quando a polícia decidiu pressionar a massa, jogando
os cavalos por cima de todo o mundo. Correrias, gritos, pânico
e, em meio ao tumulto, muita gente caiu e foi pisoteada, outros ficaram
espremidos entre os ferros dos portões e alguns até
socados nas catracas.
Os ânimos se acalmaram uma hora depois, só quando muitas
pessoas já estavam bastante machucadas. Alguns policiais se
desculpavam: "agora vão colocar a culpa na polícia,
dizendo que jogamos os cavalos em cima deles. Mas eles queriam arrombar
os portões do estádio".
Já Andrés Moreno Castilho, presidente da "Gaviões
da Fiel", era mais categórico:
"Quando o pessoal vê a cavalaria corre mesmo e dá
esse rolo que deu. Quando tem um jogo desse é preciso abrir
os portões muito antes da hora marcada, senão dá
tumulto mesmo".
O episódio não serviu para afastar os torcedores do
campo. Houve jogo assim mesmo e o estádio estava lotado. Bandeiras
fremiam, braços agitados se erguiam, como sempre. Como se nada
tivesse acontecido.
Mas logo depois do tumulto, os torcedores andavam, desorientados pelas
redondezas do estádio. Ninguém conseguia descrever direito
o que acontecera. Alguns diziam que os portões foram mesmo
forçados pela massa, outros davam versões diferentes.
|
"Virou
Bagunça" |
"Cheguei perto do meio-dia e já havia gente demais aqui
- contava ainda agitado e nervoso Cláudio Simões, um
dos "Gaviões da Fiel". Depois das 14 horas abriram
as portas e o pessoal quis entrar de uma vez. Aí veio a polícia
com os cavalos por cima da gente. O povo quis correr e virou bagunça".
Táticos-móveis, rádio-patrulhas, ambulâncias
chegavam de todos os lados para acalmar os ânimos e socorrer
os feridos. Estes eram levados primeiro ao Pronto Socorro do estádio,
onde dois médicos e dois enfermeiros faziam a triagem e encaminhavam
os casos mais graves ao Hospital das Clínicas e PS da Barra
Funda.
"Era sangue por todo lado - disse o velho Severino Justino da
Silva, que vende amendoins na porta do Pacaembu, desde que o estádio
foi inaugurado. Nunca vi coisa igual. A polícia sabendo como
são os corintianos, deveria ter chegado às 11h30, junto
com eles. Mas veio tarde demais. Só posso dizer que quando
vi aquela correria, peguei minha caixa e saí correndo.
|
Fraturação
do crânio |
O médico de plantão no estádio, Gilberto Pietro,
teve de chamar um colega para cuidar das vítimas. Ele disse
que, de modo geral, atende 15 feridos em dia de jogo. Queimaduras
provocadas por fogos, "pileques" e contusões causadas
por brigas são os casos mais comuns.
"Mas quando o Corintians joga sempre há problemas - revelou.
Hoje já atendi a dezenas de pessoas, muitas com as costelas
fraturadas. O mais grave que passou por aqui foi um rapazinho que,
além das costelas, deve ter fraturado o crânio".
O posto médico funciona no mesmo departamento onde estão
instalados a Polícia Militar e o Juizado de Menores. Pelos
corredores, logo depois do tumulto se ouviam as mais variadas versões.
A maioria delas, muito tristes.
|
Catracas
arrancadas |
Um PM, por exemplo, contava como salvou uma criança: "Na
hora que abriram o portão, a turma arrancou as catracas do
chão. Imagine a violência. Aí, vi uma criança
de uns 10 ou 12 anos ser pisoteada. Tirei-a de lá e a trouxe
para o médico. O garoto estava moído, e jorrava sangue
de sua boca".
Num canto, Rita de Cássia, 18 anos, chorava. Ela pertence a
turma "Unidos da Barra Funda". Com mais 3 amigas, chegou
antes para poder guardar lugar nas arquibancadas. Na hora da correria
ela caiu e como muitos, foi pisoteada. Na cintura, uma escoriação
enorme, além dos joelhos, muito machucados. Os policiais insistiam
para que passasse pelo médico, mas ela, resoluta, dizia chorando:
"Sá saio daqui quando aparecer alguém de minha
turma".
Na sala do Juizado de Menores, 4 crianças procuravam os país.
Ronaldo Marques, de 13 anos, era uma delas.
"Eu estava entrando atrás de meu pai, mas quando começou
a correria ele caiu e passaram em cima dele. Depois não o vi
mais."
|
Crianças
perdidas |
Ronaldo e as outras crianças foram entregues em suas casas
- ou na de parentes - por funcionários do Juizado. Eles disseram
que a cada jogo realizado no Pacaembu é essa a média
de crianças perdidas: 30 ou 40, segundo eles.
As bilheterias não paravam de vender ingresso e também
continuavam a ser consumidas as bandeiras e bonezinhos do Corintians.
Mas logo começaram novos desentendimentos. Era gente que queria
entrar sem ingresso, porque perdera o seu na hora da correria ou com
apenas parte do bilhete, pois o resto estragado pela chuva. A toda
hora chegavam novos doentes para o dr. Gilberto, mas agora os motivos
eram outros: queimados, bêbados, pessoas desmaiadas.
As 16h30 tudo parecia muito calmo. O sol voltou a brilhar sobre o
estádio lotado, a torcida alegre animada de sempre.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|