JUSTIÇA E PAZ APONTA CASOS DE TORTURAS
|
Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 1978
|
|
|
A Comissão Justiça e Paz, da Cúria Metropolitana
de São Paulo, encaminhou ontem a várias autoridades
as cópias dos depoimentos de oito pessoas que denunciaram terem
sofrido torturas no Departamento Estadual de Investigações
Criminais (Deic).
O delegado Nestor Sampaio Penteado e o investigador Oscar Matsuo são
apontados como responsáveis.
Ainda ontem, outra acusação de violência policial
chegou ao conhecimento da imprensa. A família de Eduardo Wagner
Piacentini, 15 anos, apontou investigadores do 16º DP (Vila Clementino)
como responsáveis pela morte do menor.
|
Justiça
e Paz aponta torturas praticadas no Deic |
Um grupo de oito pessoas que denunciaram ter sofrido torturas no Departamento
Estadual de Investigações Criminais (Deic), durante
o mês passado, prestou depoimento perante a Comissão
de Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de São
Paulo. Todas descreveram como foram presas e, depois, torturadas com
socos, pontapés, coronhadas, choques elétricos e no
"pau-de-arara".
A Comissão de Justiça e Paz, que tomou estes depoimentos
dia 6 deste mês, encaminhou-os, ontem, a várias autoridades,
entre elas Acácio Rebouças, presidente do Tribunal de
Justiça do Estado, e Ênio Viegas Monteiro, secretário
da Segurança Pública. Os depoimentos foram encaminhados
com um ofício assinado por Dalmo de Abreu Dallari, presidente
da Comissão de Justiça e Paz.
As oito pessoas torturadas: Francisca Sanches Borges, Nicássio
Souza Borges, Eduardo Sousa Borges, Maria Eugenia da Silva, Maria
Leite da Silva, Maria José Eugenio, Marcelina Pereira da Silva
e Isabel Maria da Silva. Estas pessoas que não registram antecedentes
criminais, foram presas durante investigação policial
para descobrir os assaltantes que roubaram Cr$ 700 mil de uma empresa
comercial, em Osasco, no início do mês passado.
Dois policiais, segundo se informou, estão diretamente envolvidos
neste caso de tortura: o delegado Nestor Sampaio Penteado e o investigador
Oscar Matsuo. Sabe-se, também, que o delegado Sérgio
Fernando Paranhos Fleury, diretor do Deic, dirigiu pessoalmente as
investigações para descobrir aqueles assaltantes de
Osasco.
As oito pessoas presas e torturadas, porém, nada tinham a ver
com o assalto e nenhuma delas registra antecedentes criminais. Eram
apenas parentes ou amigas de outras pessoas, estas sim suspeitas daquele
assalto, conforme se informou. Para chegar aos suspeitos os policiais
torturaram as seis mulheres e os dois homens.
Os depoimentos dos torturados são muito parecidos um com o
outro. As torturas descritas foram as mesmas, desde o choque elétrico
até o "pau de arara", que um dos torturados descreveu
assim: "meu filho estava pendurado como um "frango assado"
(depoimento de uma pessoa que, depois de torturada, viu o filho ser
torturado).
Ênio Viegas Monteiro, secretário da Segurança
Pública, recebeu os depoimentos da Comissão de Justiça
e Paz e os encaminhou ao delegado-geral da Polícia de São
Paulo, Tácito Pinheiro Machado. O secretário da Segurança
Pública evitou comentários. Tácito Pinheiro Machado,
segundo se informou, abrirá sindicância.
Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado e diretor do Deic,
por sua vez, não recebeu os repórteres que o procuraram,
ontem, em seu gabinete de trabalho, no quinto andar do prédio
do Deic.
Dª Francisca Sanches Borges foi presa no dia 18 de maio, dentro
da sua casa, em Osasco. Ela ficou presa até o dia 22 de maio.
Os policiais torturaram, depois, um dos seus filhos na sua frente.
Esta é a íntegra do depoimento que da Francisca Sanches
Borges prestou perante a Comissão de Justiça e Paz da
Cúria Metropolitana de São Paulo:
"Francisca Sanches Borges aqui chamada depoente, declara que
tem um filho de nome Daniel Sousa Borges, atualmente com vinte e três
anos de idade e que, desde menino, tem apresentado alguns problemas
de comportamento, apesar de jamais ter perdido ligação
com a família e dela ter recebido, sob o ponto de vista afetivo,
todo o apoio; que Daniel já esteve preso, uma vez, em razão
de condenação, na Casa de Detenção, no
Carandiru, tendo sido posto em liberdade condicional após dois
ou três anos; que anteriormente, quando menor, também
apresentou alguns problemas; que a depoente é casada com Nicássio
de Sousa Borges, funcionário público da Prefeitura de
São Paulo, aposentado, e que hoje é lavrador do sítio
onde residem, em Osasco; que a depoente não tem qualquer antecedente
criminal, assim como seu marido; que na madrugada do dia 18 de maio
último, encontrava-se a depoente em sua residência, juntamente
com o marido e seu filho de criação Eduardo Donizetti
Sousa Borges, assim como uma outra menina, a quem a depoente, às
vezes, toma conta, menina esta de nome Isabel Cristina de onze anos
de idade; que por volta das quatro ou quatro e meia da manhã
a depoente foi despertada por barulho na porta e com gritos de homens
que avisavam tratar-se de polícia e que a casa estava cercada;
que, aberta a porta, a casa foi invadida por três policiais,
um dos quais com caracteristicas de japonês, um deles, pelo
menos, armado de arma longa e dois dos quais se portanto de maneira
muito violenta, aos gritos, dizendo muitos palavrões, enquanto
o terceiro se portava de maneira muito humana, intercedendo em favor
da depoente e de seus familiares; que a depoente e seu marido apanharam
muito, sendo que Eduardo Donizetti, seu filho de criação,
chegou a pular em um policial (o japonês) e o marido implorando
para que não batessem mais; que a depoente, em consequência
das pancadas, sofreu queda, vindo a ferir-se na região do lábio
superior; que os policiais se faziam acompanhar de Maria José,
companheira de seu filho Daniel Sousa Borges; que Maria José
estava algemada; que, em seguida, foram colocados numa viatura, a
depoente e seu marido, além de Maria José, sendo todos
conduzidos ao DEIC, após terem passado pela casa de um outro
filho seu, de nome Eduardo Sousa Borges, que também foi preso;
que, chegando ao DEIC, foram todos levados a um andar que a depoente
não identifica; que o marido da depoente ficou sentado numa
sala, juntamente com a depoente, enquanto seu filho (Eduardo Sousa
Borges) permanecia no corredor contíguo;
|
"Fios
elétricos" |
Que obrigaram a depoente a sentar-se num banco, amarraram-lhe fios
elétricos em suas mãos e, em seguida, passou a depoente
a sentir forte choque e a gritar que não sabia de nada, enquanto
os torturadores exigiam que ela declinasse o endereço de seu
filho Daniel Sousa Borges; que a depoente dizia que poderiam até
matá-la, mas ela nada poderia dizer; que, em seguida, a depoente
acha que perdeu ligeiramente os sentidos, quando percebeu que os fios
já não estavam amarrados nos dedos e seu filho (Eduardo
Souza Borges) entrava na sala gritando: "O que estão fazendo
com minha mãe"; que Eduardo foi agarrado e pendurado num
ferro que se apoiava entre as duas mesas, permanecendo amarrado ao
ferro numa posição de "frango assado", enquanto
que o ferro era acionado por uma especie de manivela e, com um instrumento,
batiam na sola do pé de Eduardo; que a depoente já nem
conseguia chorar, apenas pedia socorro, e conseguiu apoiar a cabeça
do seu filho, no que foi impedida por um dos policiais; que a depoente
ainda gritava que a língua de seu filho Eduardo começava
a enrolar e que Eduardo era moço e trabalhador e que nunca
esteve envolvido em qualquer problema; que um dos policiais, que estava
na sala, era o japonês, que batia, e que mais tarde veio a saber
chamar-se Matsuo;
|
Cr$
18 mil |
"Que a depoente esteve presa numa cela sobre o cimento, junto
com muitas outras mulheres e, no dia 22 de maio, veio a ser solta,
por interferência profissional do advogado Iran de Salazar,
que cobrou de seu genro dezoito mil cruzeiros, oito mil dos quais
pagos no ato; que seu marido foi solto no dia seguinte, juntamente
com seu filho Eduardo; que a depoente é capaz de reconhecer,
por fotografia ou pessoalmente, principalmente, o japonês, muito
embora se sinta atemorizada, já que ele lhe declarou ao ouvido
que a mataria se contasse ao Juiz Corregedor tudo o que se passou;
que Maria José presenciou a depoente ser torturada; que a depoente
recebeu uma coronhada no seio esquerdo, que deixou uma grande mancha
roxa, que hoje permanecesse azulada claro; que a depoente compareceu
a esta Comissão de Justiça e Paz a fim de pedir o empenho
no sentido de que sua familia seja protegida e que seu filho Daniel
deixe de ser torturado, se é que continua a ser; que a depoente,
ao ser retirada do Deic, estava acompanhada de sua filha Rosa e Antonia,
e quando se encontrava no corredor.
|
Filete
de sangue |
"Antonia disse "Mãe, olha o Daniel"; que a depoente
se virou, então, e viu um rapaz franzino, de estatura de Daniel,
algemado com as mãos às costas, numa posição
meio torta, apresentando um dos olhos sob uma grande mancha escura
e um filete de sangue entre o nariz e a boca; que o estado do rapaz
era tão ruim e a situação psíquica da
depoente tão precária, que foi difícil ela reconhecer
o seu próprio filho, tanto assim que por Daniel ter dito: "Sou
eu, mãe, sou eu, Daniel"; que Daniel, após pedir
aos policiais, pode conversar com a depoente e com Antonia; que no
dia seguinte, dia 23 de maio, a depoente foi ao Juiz Corregedor contar
tudo o que lhe aconteceu".
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|