TOMBADA A LADEIRA DA MEMÓRIA

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 4 de abril de 1975

O secretário José Mindlin, da Cultura, Ciência e Tecnologia, determinou ontem o tombamento do Largo da Memória (que compreende o espaço ocupado pelo obelisco, parte da rua Xavier de Toledo e a ladeira propriamente dita). A medida, entretanto, não impede a derrubada de prédios existentes naquela área, já desapropriados pela Companhia do Metrô para a construção da Linha Leste-Oeste.
Em Campinas, a Prefeitura anunciou concorrência pública para a construção do Metrô local.

Saia, o velho arquiteto, fala na "grande vitória"

Um arquiteto de 63 anos conseguiu uma grande vitória: o tombamento, pelo Patrimônio Histórico de São Paulo, da Ladeira da Memória. Luís Saia, o arquiteto, que é chefe do 4º Distrito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e conselheiro do serviço do Patrimônio Histórico do Estado, está muito feliz com sua vitória. E tem certeza que a decisão vai de encontro ao pensamento da maioria da população. Agora a Ladeira da Memória não poderá ser alterada pela linha Leste-Oeste do Metrô, que tinha planos de construir uma estação ou um respiradouro no local.
"A Ladeira da Memória é intocável" - diz Saia, revoltado com os engenheiros do Metrô, segundo ele desinteressados do patrimônio histórico de São Paulo. E dá um exemplo: o projeto de uma chaminé, ou respiradouro, que seria construído na área do Convento da Luz. Luís Saia interveio e impediu a construção.

A história

O arquiteto fala com fluência e conhecimento dos locais que mostram um pouco do passado da cidade. E o tombamento da Ladeira tem suas razões: ali situava-se o "Tanque Reuno" - local para onde eram canalizadas as águas das nascentes da avenida Paulista. Por volta de 1900, a Ladeira possuia uma bica e um chafariz e era ponto de reunião dos moradores de São Paulo. Os viajantes aproveitavam para encher com água pura seus cantis, antes de continuar a viagem.
O obelisco que ainda existe na Ladeira foi construído no começo do século XIX, por Daniel Pedro Muller, para comemorar o término das obras da Estrada Velha de Santos.
No começo do século, a Ladeira sofreu transformações, projetadas pelo arquiteto argentino Dubugras, com a construção do chafariz que existe até hoje, as escadas e as paredes de pedra. A partir daí, a Ladeira teve poucas mudanças. Os edifícios surgiram nas ruas ao seu redor, o centro mudou, ganhando arranha-céus, mas a Ladeira continuou intocável.
Luís Saia lembra que a chamada bacia do Anhangabaú transformou-se totalmente.
"Eu mesmo assisti, de 1932 a 1940, por três vezes, a retificação do córrego Anhangabaú. Naquela época a cidade já sentia a falta de áreas verdes. As enchentes que existem hoje são consequências de um solo cheio de concreto, que não permite o escoamento das águas."

A dúvida

O arquiteto Saia está atento para as obras que o Metrô realiza na cidade. Sua ira não se restringe aos monumentos. Ele ataca os preços cobrados pelo Metrô.
"Eu ponho em dúvida a forma como o Metrô está sendo construido. Em todos os países, ele sempre é um meio de transporte de massa, com preços compatíveis com o poder aquisitivo de um operário. Nada justifica os Cr$ 1,50 por uma passagem. Só mesmo aqui poderia ocorrer uma barbaridade destas."
E conta que, em relação à Igreja do Carmo, outro local histórico, houve um alarme falso:
"Soube que ela estaria correndo perigo, por causa das vibrações do Metrô, e precisaria ser demolida. Felizmente isso não aconteceu. Como todos os templos da cidade, a igreja data de fins do século XVIII".
Formado pela Escola Politécnica em 1946, ele sempre foi um homem que lutou pelas suas idéias e princípios:
"Eu me formei contra o curso e contra a escola. Eles não tinham nada que ensinar arquitetura numa escola de engenharia. Depois, dediquei toda a minha a vida ao Serviço do Patrimônio Histórico. Quando entrei neste serviço, meu chefe era o poeta Mario de Andrade".
No seu ponto de vista, a estação metroviária São Bento não causaria nenhum mal, derrubando a igreja que existe no largo:
"A antiga igreja de São Bento foi construida por José de Góes Morais. Sua casa, em Santana, está tombada pelo Patrimônio Histórico. A casa, inclusive, não foi restaurada por culpa da própria Prefeitura. Mas a velha igreja foi demolida. A que existe atualmente não deve ter nem 50 anos. Ela tem estilo alemão, com pretensões a romano e sem nenhum sentido, fugindo das tradições brasileira. Seria ótimo que as obras do Metrô acabassem com ela".
Ele afirma ainda que a igreja conserva um grande caráter de religiosidade e que não acredita que os restos do bandeirante Fernão Dias Paes estejam enterrados no local.
E volta a criticar o Metrô:
"Em todos os sentidos, as obras do Metrô e seu traçado são plenamente discutíveis. Em todo o mundo, a conservação histórica é de suma importância. Só aqui é que metem os pés pelas mãos e não se preocupam com os edifícios centenários. Infelizmente o Metrô é o melhor exemplo disto".

As árvores

Saia lembra a possível derrubada das árvores da praça da República. E as idéias - já desmentidas - de sua transformação em mais um colosso de concreto.
"Seria pura e simplesmente um crime. Os prefeitos já acabaram com quase todas as praças da cidade. E as poucas que restam deveriam ser intocáveis. Um arquiteto muito "coió" propôs outro dia a construção de um monstro de concreto na praça, com o formato de uma árvore. Nós precisamos é de áreas verdes, e não de uma mente doentia, que só pensa em concreto."
Acusa o projeto da praça Roosevelt:
"A população não quer e não precisa de outro monstrengo como a praça Roosevelt. O que os habitantes da cidade precisam são de mais áreas verdes e livres. Da mesma forma que esta praça, as obras da Prefeitura acabaram com o parque D. Pedro II e com a praça Marechal Deodoro. Só restam quatro áreas verdes nos pontos centrais de São Paulo: a praça da República, a praça Buenos Aires, o jardim da Luz e o parque Siqueira Campos (ex-Trianon). Cada novo prefeito que assume engole uma delas. Dentro de quatro mandatos não haverá mais com o que acabar".
Para cuidar do patrimônio histórico dos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Saia tem a ajuda de apenas dois funcionários. Mas estudantes de arquitetura, história e artes também ajudam bastante.
"A cidade tem uma estrutura e um comportamento. O sistema viário tem que se enquadrar nestes dados. Não adianta estes sonhadores do Metrô criarem fantasias. A realidade se resume em algo bem palpável: o passageiro."

O tombamento torna intocável

"O tombamento tem como finalidade tornar intocável o bem cultural atingido por esta medida; assim, toda e qualquer reforma que se pretenda fazer deve ser submetida à aprovação deste órgão."
A explicação é do presidente do Condephaat, Rui de Azevedo Marques, sobre a resolução da Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia a respeito do Largo da Memória. Quanto aos prédios que se encontram na área atingida pelo tombamento (ruas Xavier de Toledo e Quirino de Andrade), poderão ser desapropriados e derrubados pela Companhia do Metrô.
Segundo Rui de Azevedo Marques, não há razões para sua preservação:
"Esses prédios não têm significação artística nenhuma e nós só protegemos o que tem valor histórico. O Metrô pode desapropriar e demolir, desde que não atinja o Largo tombado. Ao Condephaat caberá opinar sobre o que pretendemos construir depois, na área vazia".
Ele adianta que não será favorável à edificação futura de prédios agressivos à visualização do Largo. Nesse sentido, dá o exemplo de cidades como Londres e Paris, onde as estações do Metrô são subterrâneas e não interferem na ecologia urbana:
"Na Europa o Metrô não transforma a cidade, ao contrário, se integra na paisagem. As entradas e saídas de estações respeitam a arquitetura tradicional. Assim, seria absurdo que na área desapropriada junto ao Largo da Memória se edificasse um prédio de concreto ultramoderno".
O presidente do Condephaat diz também que não é de sua alçada acompanhar os trabalhos que a Companhia do Metrô realizará na área tombada:
"A responsabilidade de preservar o monumento histórico é do Metrô, que já entrou em contato conosco e informou sobre as obras que pretende fazer ali a curto prazo: basicamente a instalação do canteiro para perfuração do túnel. Quaisquer projetos sobre futuras construções nos serão envidados para análise e aprovação".
Rui de Azevedo Marques explica que o processo de tombamento do Largo da Memória foi iniciado em 1971 e sua conclusão, agora, nada tem a ver com as pretensões da Companhia do Metrô. A demora deve-se ao cuidado com que devem ser realizadas as pesquisas sobre a área, que incluem mínimos detalhes arquitetônicos.
Nesse sentido, afirma que o secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia, José E. Mindlin, determinou a implantação de uma nova política de proteção aos bens culturais:
"Essa política visa minimizar todos os problemas decorrentes da aplicação do instituto do tombamento, que são vários. Por exemplo, quando se inicia o tombamento de um edifício em processo de inventário, o Condephaat é impedido de microfilmar documentos relativos ao caso. São melindres que retardam a conclusão de um tombamento".
Porém, assinala que, ao se iniciar um processo de tombamento, a obra em questão torna-se intocável, razão pela qual a Companhia do Metrô nunca ameaçou o Largo da Memória de demolição.
Outro detalhe de um tombamento é que o proprietário de um edifício de valor histórico não perde seus direitos sobre a obra. Ela não é transferida para o Estado. Porém, cabe ao Condephaat opinar e permitir quaisquer mudanças que se pretenda fazer, até o conserto de uma fechadura, a alteração de uma única telha. Ruy de Azevedo Marques explica que o Condephaat foi criado em 1968, razão pela qual já encontrou a cidade devastada:
"Agora, temos a proteger o pouco que restou de nossos bens culturais, demolidos pelo progresso".

Comerciantes estão alegres, mas sem razão

"Se realmente a Companhia do Metrô não derrubar nossos prédios, vamos oferecer um banquete ao pessoal do Patrimônio Histórico...".
Com frases desse tipo, os comerciantes da Ladeira da Memória, junto ao Vale do Anhangabaú, manifestavam ontem à tarde toda a sua euforia com a publicação no "Diário Oficial" do decreto de tombamento daquele local (eles não sabiam, porém, que seus prédios não foram atingidos pelo tombamento).
Durante as duas última semanas quase todos eles, desanimados, mostravam-se dispostos a fechar, definitivamente, seus estabelecimentos, mudando-se para outros locais ou procurando outros ramos de atividade.

A "loteria"

Muito alegre ao saber do tombamento, Antonio do Vale, gerente de uma sapataria, afirmava:
"Essa notícia foi tão boa quanto ganhar na loteria. Nossa loja, por exemplo, não tinha para onde ir, pois estão pedindo até 300 mil cruzeiros por uma portinha qualquer no centro da cidade, além de mais 7 mil cruzeiros de aluguel. Estamos aqui na Ladeira da Memória há 21 anos, há firmamos nossa freguesia, vem gente até de Santo Amaro procurar os nossos serviços. Como ia ser se saíssemos daqui?"

O barbeiro

Para Orlando Brizola, barbeiro que trabalha há mais de 20 anos na Ladeira, ao lado do obelisco, a satisfação foi enorme:
"Nós estávamos muito tristes, pois temos fregueses que vêm aqui desde que abrimos nossas portas. Duas ou três vezes por semana, infalivelmente, eles, além de fazer a barba ou cabelo, batem um bom papo. Creio que também os fregueses estavam preocupados com nossa possível mudança. Agora, se tudo der mesmo certo, vamos soltar rojões por aí...".

A família

"Oba! Que felicidade." Esta foi a reação inicial de dona Wanda Dias, que, juntamente com o marido e os filhos, trabalha em uma loja de artigos elétricos há mais de duas décadas e com freguesia sólida.
"Nossa vida, os estudos de nossos filhos, a manutenção da casa, nossa comida, tudo enfim depende desta loja. Se tivéssemos de sair daqui e começar tudo de novo, seria um desastre."
"De qualquer forma, seria um crime acabar com a Ladeira da Memória, com este tão histórico pedaço de São Paulo...".

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