PAUL CELAN: A LINGUAGEM DESTRUIDA
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Publicado
na Folha de S. Paulo,
domingo, 19 de agosto de 1973.
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"Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã"
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MODESTO
CARONE
Estas
são as linhas iniciais de um dos poemas mais famosos da língua
alemã, surgidos no periodo do após-guerra. O autor, Paul Celan
era, na época de sua publicação, conhecido por um circulo pequeno
de leitores. Com a Fuga da Morte (Todesfuge) tornou-se,
no entanto, não só nome obrigatório em antologias, como também,
um clássico alemão moderno, cuja obra, curta e densa, passou a
merecer a prestimosa atenção de críticos e professores. Essa predileção
talvez possa ser explicada pelo desafio que seus textos francamente
obscuros e "herméticos" oferecem aos dissecadores de toda poesia
"dificil". Mas é possível, também, que o que este poeta diz, no
seu código cifrado, exerça um poderoso apelo sobre todos os que
hoje se preocupam com o estatuto da linguagem - principalmente
com o da linguagem poética, que, marginalizada numa sociedade
tecnológica de preconceitos bem firmados sobre a "utilidade",
a "eficiência" e a "precisão" das atividades do homem moderno,
se descarta do discurso poetico e literário como se êle não atendesse
a mais nenhuma necessidade humana. Acontece, porém, que a Fuga
da Morte manipulava um tema e um dilema que a lucidez contemporânea
não estava em condições de dispensar como inutil, pois o poema
de repente trazia à tona da linguagem e da consciência lírica
o horror dos campos de concentração da Alemanha nazista. Desmentia-se,
assim, a declaração categórica de que depois de Auschwitz, não
havia mais lugar para a poesia no mundo. Pois havia - e com um
dado a mais: ela podia inclusive inscrever, no seu fechado universo
de signos, a própria realidade de Auschwitz. Celan foi o primeiro
a fazê-lo. Para isso tinha não só o instrumento como a experiência
concreta: seus pais tinham sido assassinados num KZ e ele sobreviveu
aos campos e à guerra para dar testemunho do que vivera. Testemunho
de poeta: arrancando do miolo das palavras um vigor germinal que
parecia pelo uso comum e irrefletido da língua e dispondo-as em
combinações móveis como acordes numa fuga musical; chocando-as
uma contra as outras, para que a colisão surgisse num clarão repentino
de percepção e conhecimento: uma revelação. Esse objetivo não
comportava o apelo ao panfleto, que comumente dilui a veracidade
da emoção e da experiência profunda nos estereótipos da linguagem-clichê.
A denúncia é mais atuante na medida em que, ameaçando desmantelar
o universo verbal pré-constituído, não dá margem às acomodações
de uma leitura digestiva e compele o leitor a lidar com o desconhecido
desconfortável, que é uma linguagem "quebrada". Pois só assim
é que os preconceitos (os conceitos já cristalizados na
linguagem usada mecanicamente) se desarticulam e permitem a entrada
do novo na sensibilidade e na compreensão: uma novidade
"conhecida" transformada em choque através do arranjo inesperado
das palavras. Esse trabalho de afugentar os automatismos com que
tantas vezes deglutimos a História sem a menor angústia (como
acontece com a impessoalidade higiênica dos noticiários) começa,
no poema, já na primeira linha, quando o poeta lança na página
o leite negro da madrugada. Sabemos, através da linguagem
comum, que leite nenhum é negro; no entanto, o poeta o diz sem
cerimônias e temos que aceitá-lo, intuindo obscuramente o peso
dessa declaração. No impacto somos levados a acatar a qualidade
desse leite que nós bebemos de dia e à noite. Veja-se bem:
nós é que o bebemos. É o poeta que já nos envolve nessa
vivência tenebrosa. A partir daí o único recurso, que não seja
uma fuga de consciência pesada e desprezada, é acompanhá-lo. E
nesse passo vamos ao encontro do homem que "bole com cobras" e
começamos a partilhar de um destino. Destino de que tínhamos apenas
noticia - pelos jornais, pelos livros, pelas fotografias,
pelos documentários - mas que ainda não havíamos vivido no mundo
de uma comunicação verbal fora de controle coletivo, de
uma fala não acomodada e por isso mesmo radical. Radical como
a situação destes homens concentrados diante de um juízo final
mais arbitrário do que a própria sintaxe que agora o re-constitui.
Pois esta ainda guarda as proporções de uma trabalhada e penosa
harmonia, ao passo que a outra, a real, a que permaneceu
gravada nas ordens de deportação e de extermínio, essa sempre
conservou um alvoroçado respeito pela objetividade das
normas consagradas. Mas é justamente pelas frestas desse idioma
fraturado que começam a sair os fragmentos liberados de um cortejo
irracional e no entanto verdadeiro: filas, mastins, assobios,
covas, fumaça de fornos crematórios, olhos azuis, ordens, crepúsculo,
cabelos dourados e cabelos em cinzas - tudo jogado numa rede pródiga
de repetições e variações, exatamente como a música desse "mestre
da Alemanha", que é a Morte. Pois é a técnica do contraponto musical
que organiza e transmite este poema, montado a partir de pontos
que se separam, se agrupam e se opõem, para novamente se unirem
e separarem, num trânsito complicado que, de repente, se imobiliza
com a bala de chumbo que "te acerta em cheio". A tensão, no entanto,
ainda está lá, na oposição final de "cabelos dourados" e de "cabelos
de cinzas". São estes que, correndo paralelos, tema e contratema
da peça, transcendem o campo e seu séquito de aparições para se
firmarem, no espaço aberto pela linguagem desestereotipada, como
possibilidades de uma escolha.
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Paul
Celan é o pseudônimo literário de Paul Antschel, nascido em Czernowtiz
em 1920. Durante a ocupação nazista, seu pais, judeus alemães, foram
presos e mortos em campos de concentração. Ele também foi aprisionado,
mas conseguiu fugir e passou a viver na União Soviética. Terminada
a guerra, voltou à Romênia, de onde rumou para Paris, onde se estabeleceu
e suicidou-se, em 1971. Sua obra, das mais importantes da lírica alemã
contemporânea, inclue os livros Papoula e Memoria, De Limiar a Limiar,
A Rosa-ninguém, Giro de Fôlego e Grade de Linguagem, além de traduções
de poetas franceses e russos para a lingua alemã.
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FUGA
DA MORTE
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Paul
Celan
Leite
negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós
o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos
bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um
homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve
para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve
e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para
os seus Mastins
assobia
para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite
negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós
te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos
bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve
para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu
cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz
apertado
Ele
brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra
a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem
mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite
negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós
te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos
bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu
cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele
brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele
brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no
ar
aí
vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite
negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós
te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós
te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a
morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te
com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um
homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele
atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da
Alemanha
teu
cabelo de ouro Margarete
teu
cabelo de cinzas Sulamita
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(Tradução de Modesto Carone em Quatro Mil Anos de Poesia, Editora
Perspectiva)
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