1964, UM CONTRAGOLPE REVOLUCIONÁRIO
|
Publicado
na Folha de S. Paulo, domingo, 2 de abril de 1978
|
|
|
Historiador
revela o desenvolvimento da crise que levou ao movimento de 64 |
Hélio
Silva
Foi
ontem, foi há 14 anos. Muito tempo para se suportar uma situação
de emergência que se prolongou além das Expectativas,
até mesmo da expectativa de seus participantes. Pouco tempo
para julgar, quando falta à perspectiva histórica
e cada um de nós se situa dentro de uma condição
limitante, vendo o que vê, como vê de onde se vê.
O historiador, porém, não tem como missão somente
o julgamento definitivo de uma época. Porque deve registrá-la
quando ocorre, documentá-la enquanto vivem os seus personagens
e subsistem as fontes de informação, os jornais, as
gravações, os documentos, as fotografias, os livros
escritos na hora quente. Então, a história é
um fluxo contínuo que se avoluma e corporifica até
a versão definitiva.
Quando se contavam 10 anos do movimento de 31 de março de
1964 publiquei um livro que pretendeu dar os motivos e a execução
daquele fato revolucionário. Não tenho nenhuma palavra
a modificar naquele texto que foi lido pelos vencedores e vencidos
sem poder ser contestado.
Quatro anos depois, quando surgiram e, também, desapareceram
testemunhas importantes, volto ao tema para completar o juizo que
formulei, agora corroborado por outros livros, entrevistas, revelações.
A interrogação com que abria o meu trabalho - "Golpe
ou Contragolpe?" - foi respondida. Se os vencedores usam a
denominação de revolução e em seu nome
prosseguem, nenhum estudioso de história ou sociologia aceita
como tal o movimento que mudou uma situação política,
sem atingir a estrutura política nacional. Antes os vencedores
tiveram a preocupação, que permanece, de manterem
os 3 Poderes da República - Executivo, Legislativo e Judiciário
- em ostensivo funcionamento, embora a hipertrofia monstruosa do
primeiro houvesse afetado fundamentalmente a constituição
e o funcionamento dos outros dois.
Assim permaneço, coerentemente, considerando o movimento
de 31 de março de 1964 um contragolpe revolucionário
contra um processo revolucionário que se tornava ameaçador.
|
Crise
militar tem início em 22, com Hermes da Fonseca |
Há uma crise institucional brasileira que atingiu seu período
crítico entre 1961 e 1965. Então, tivemos 3 presidentes,
marcando com seu nome 3 acontecimentos anormais: o 1.o, Jânio
Quadros, eleito acima, ou melhor, contra as legendas partidárias,
foi levado à renúncia; o 2.o, João Goulart, depois
de enfrentar a árdua batalha da posse, foi deposto; o 3.o,
Humberto Castelo Branco, foi levado à Presidência da
República por um movimento revolucionário que teve de
emendar, por duas vezes, o processo eleitoral, quanto à inelegibilidade
e à forma de votação. Essa sequência de
substituições irregulares evidencia a crise política,
o fato politico dentro do qual se desenvolveram a crise militar e
a crise sócio-econômica.
A crise militar que se inicia em 1922, quando o presidente do Clube
Militar, antigo ministro da Guerra e ex-presidente da República,
marechal Hermes da Fonseca, dirigiu-se, diretamente, ao comandante
da guarnição federal de Pernambuco, advertindo-o sobre
a missão do Exército. É a negação
da obediência ao chefe constitucional das Forças Armadas,
o presidente da República. Por isso é advertido e preso.
Porque é preso a mocidade militar se insurge no Forte de Copacabana
e na Escola de Realengo. É o primeiro cinco de julho que se
reproduzirá, 2 anos depois, em São Paulo.
Os militares revolucionários de 1964 reivindicam essa linhagem
direta. É o exercício daquela função participante
que o "tenentismo" cumpriu, naqueles dois levantes; depois,
na pregação revolucionária da coluna Prestes;
na participação do movimento de outubro de 1930; no
Clube 3 de Outubro; nas interventorias militares; na ocupação
de São Paulo; na guerra paulista de 1932; na Constituinte de
1933/34.
Reconstituídos os quadros políticos, restaurado o regime
constitucional, recolheram-se os militares aos quartéis. Mas
não se desinteressaram da política. A revolta vermelha
de 1935 vai mostrar o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, que
foi feito pelos militares, embora Vargas apareça como seu principal
personagem e beneficiário, porque são os militares que
assumem, de fato, a função de árbitro e estabilizador,
que farão sentir sempre que julgarem ameaçado o sistema
existente.
Os mais ativos participantes das conspirações que levaram
a marca de 1964 assinalam a novembrada de 1955 como ponto de partida
para aquele movimento. A intervenção dos militares,
primeiro contra Vargas, impondo a sua renúncia; depois, nos
impedimentos de João Café Filho e Carlos Coimbra da
Luz, deveria, na opinião desses revolucionários, ter-se
completado na tomada do poder e na instalação do sistema,
que vimos a conhecer mais recentemente. Porque o movimento de março
de 1964 teria eclodido em agosto de 1954, se Vargas houvesse simplesmente
renunciado. O impacto do seu suicídio nas massas populares
e na consciência da Nação tornou impossível
o prosseguimento violento do processo subversivo desencadeado. Basta
lembrar que o mais ardoroso dos propagandistas da reforma - Carlos
Lacerda - logo após o suicídio de Vargas teve que se
refugiar no Galeão, temeroso da reação popular.
A crise militar teve outro período crítico, logo após
a 2.a Guerra Mundial. Porque ao contrário do que informam os
brasilianistas pouco afeitos à tradição histórica
do Brasil, as Forças Armadas não voltaram do conflito
unificadas politicamente, pois foi a partir daí que se caracterizaram,
mais profundamente, no Exército e na Aeronáutica, as
duas facções que se hostilizavam até nas denominações
que usavam. A corrente que se denominava "nacionalista"
era chamada "comunista" pelo grupo contrário, ao
passo que o grupo que se reunia na "cruzada democrática"
era acoimada de "entreguista" e "golpista".
Foram memoráveis as lutas do Clube Militar. Às vésperas
da posse de Getúlio Vargas, em 1951, houve um pleito memorável
em que as duas chapas eram encabeçadas, respectivamente, pelos
generais Estilac Leal e Oswaldo Cordeiro de Farias. Cumpre lembrar
que Estilac Leal fora o interlocutor do ministro da Guerra, Canrobert
Pereira da Costa, quando este advertia a inconveniência da candidatura
Vargas. Estilac comunicou-lhe que vinha do Sul e as guarnições
do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná estavam ao lado
de Vargas.
A eleição no Clube Militar deu a vitória a Estilac
Leal. Mas tão forte era a pressão das cúpulas
militares que a diretoria foi, praticamente, dissolvida com as transferências
dos diretores eleitos para guarnições distantes.
Vargas assume a Presidência da República. Convida Estilac
Leal para seu ministro da Guerra. Mas nem o presidente da República
nem o ministro da Guerra têm poder para desfazer as transferências.
A crise continuava e crescia. Estilac Leal demitiu-se após
o incidente com o general Zenóbio da Costa. A rigor, no dia
em que assinou a demissão do seu primeiro ministro da Guerra,
Vargas estava deposto. O mais foi consequência.
|
O
regime perde a capacidade de autocorrigir-se |
A origem política de 31 de Março decorre da crise institucional,
já delineada desde os primeiros anos de vigência da Constituição
de 1946. Esta crise tem, como traço fundamental a separação
cada vez maior entre a Nação e a sua representação,
gerando os episódios dramáticos que assinalam os últimos
anos, sobretudo a partir de 1954. As crises do poder sucedem-se, nos
20 anos decorridos entre 29 de outubro de 1945 (deposição
de Vargas) e 31 de março de 1964 (deposição de
Jango). Nesse interregno registram-se: os impedimentos de Café
Filho e Carlos Luiz, 1955; a renúncia de Jânio, em 1961;
a batalha da posse de Jango; a adoção do parlamentarismo;
o plebiscito presidencialista. Os últimos acontecimentos do
governo Jango confirmaram a permanência da crise.
Nesse espaço de tempo apenas dois presidentes concluíram
seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Ambos, porém, encerraram seus governos com espetaculares derrotas
políticas e eleitorais.
O situacionismo passou a perder as eleições quase sistematicamente
e, tanto no cenário federal como no estadual. A máquina
político-administrativa mostrava-se incapaz de governar com
eficiência, desgastando quaisquer dirigentes.
O regime, com a falta de representatividade, perdera a capacidade
de autocorrigir-se, essencia dos regimes realmente democráticos.
As eleições passaram a ser antes um elemento de protesto
do que afirmações políticas de natureza positiva,
desde que se mostravam insuficientes para a organização
do poder.
A vitória de Jânio significou menos a afirmação
de tendências partidárias do que uma organização
política, do que o diagnóstico irrecusável de
que estavam ultrapassadas as agremiações existentes.
Enquanto as forças que apoiavam a candidatura do general Henrique
Duffles Teixeira Lott tomavam cerca de 80% do eleitorado, o partido
que lançara o nome de Jânio Quadros obtivera em 1958
apenas 20% de legenda. O resultado do pleito em que Jânio recebeu
quase 6 milhões de votos rompeu o controle das cúpulas
partidárias.
O sistema eleitoral reduzira-se a uma experiência cada vez menor,
faltando à sua finalidade o formar governos estáveis
e operantes. Proliferaram as alianças e legendas. Essas alianças
esvaziavam os partidos, ou surgiam desse próprio esvaziamento.
O Congresso, em funcionamento, já não correspondia às
necessidades e às aspirações do eleitorado. A
eleição de Jânio teve todas as características
de um protesto nas urnas. Era a revolução pelo voto.
Pois vencera contra o sistema imperante desde 1945 - a aliança
das cúpulas PSD-PTB - enfraquecidas em suas antiga bases. O
Executivo e o Legislativo não se entendiam.
Outra consequência dessa distorção fora a escolha
do vice-presidente. Configurava-se o caráter agudo da crise:
os partidos, anulados eleitoralmente, continuavam dominando os postos-chaves
do Congresso; o presidente vencedor por esmagadora maioria era prisioneiro
desses mesmos partidos que controlavam o Congresso. E tinha, como
vice-presidente, o chefe da oposição.
Assim a renúncia de Jânio evidencia a falência
do sistema. Estávamos diante de uma clara determinação
legal que ordenava a designação do chefe da oposição
para substituir o presidente renunciante.
Nesta situação, novamente, as Forças Armadas
querem intervir impedindo a posse do vice-presidente da República.
Mas o que seria o desrespeito frontal à Constituição
não consegue unificar os grandes efetivos e nem obter o respaldo
do Congresso. É quando surge a fórmula parlamentarista.
O parlamentarismo subentende a existência de partidos. No momento
o que se positivava era a falência dos partidos, substituídos,
de fato, pelas legendas, intra ou interpartidárias. Consequentemente,
a fórmula parlamentarista teve uma vida efêmera e artificial.
Jango herdara uma pesada herança dos governos anteriores. Dele
se exigia uma série de reformas, que, para serem implementadas,
reclamavam poderes absolutos. Ao mesmo tempo, tinha que ater-se a
princípios constitucionais que foram forçosamente supridos
ou alterados por força das circunstâncias depois de 1964.
A crise favorecia a agitação e a muitos pareceu que
nessa agitação se resumia a crise. Na turbulência
característica desse processo, as correntes exaltadas e as
influências intrínsecas ou extrínsecas interessadas
em impedir as reformas anunciadas atuaram desasombradamente. O estudo
daquele período revela com surpresa, que os fatos desencadeantes
do desfecho surgiram totalmente daquele que detinha o poder. Jango
foi arrastado pelos acontecimentos.
|
EUA
acompanhavam o desenrolar |
Mencionadas as causas políticas e militares que atuaram na
deposição de Jango vale ressaltar as causas extrínsecas.
As influências estranhas que atuaram no processo revolucionário
brasileiro.
Quando escrevi "1964 - Golpe ou Contragolpe?" dediquei todo
um capítulo à atuação dos Estados Unidos,
por seu governo, seus agentes ou seus interesses na queda de Jango.
O trabalho pessoal de pesquisa denunciou os primeiros contatos com
agentes da CIA e a presença de uma esquadra americana na costa
brasileira.
Já agora, depois da publicação dos documentos
encontrados na Biblioteca do Presidente Lindon Johnson, já
não é necessário insistir. Os americanos acompanhavam,
vivamente, o desenrolar dos acontecimentos e o empresariado que financiou
a Marcha da Família em São Paulo e os preparativos da
Revolução tinha, em grande escala, a participação
das multinacionais.
Se assim ficou comprovada a atuação importante desses
elementos, isso não quer dizer que foram eles que fizeram a
Revolução.
O movimento de março de 1964 tornara-se inevitável dada
a soma dos erros que se vinham acumulando durante tantos anos. A crise
militar que assinalamos em seus traços mais fortes, culminaria,
mais cedo ou mais tarde, no choque entre as duas correntes. A crise
institucional abalaria o regime em busca de uma nova fórmula
partidária em que os partidos representassem verdadeiramente
correntes de opinião. Perdida a representatividade, o sistema
político anulava-se, como força popular.
A crise econômica avolumava-se. Se, nas economias capitalistas
dos países onde existem sociedades que hajam tomado plena consciência
de seus poderes é possível conceber uma política
de desenvolvimento nos moldes clássicos, os países que
não reúnem tais condições têm de
buscar outras formas de progresso material. E inevitável neles
que a política econômica sofra a pressão dos grupos
diretamente interessados na defesa de vantagens particulares.
O que poderia ser feito, em tempo, não foi feito. Não
buscaram as causas para anular as crises que eram seus efeitos. Antes,
consideraram-se as crises como as causas.
Assim, o movimento de 31 de março se tornou inevitável.
Embora não seja uma revolução, como assim o entende
a ciência política, tornou-se irreversível, em
suas consequências.
Escrevendo, 10 anos depois, assinalei 3 características do
movimento de 31 de março. Era inevitável; tornou-se
irreversível; será transitório.
14 anos é um longo e duro período a suportar, mas não
é a eternidade. Insisto na minha previsão. Contesto
que a revolução possa institucionalizar-se. Uma revolução
é um processo dinâmico que se extingue justo quando se
institucionaliza. E isso tem que acontecer.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|